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José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Do que eu falo quando pedalo?

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
09/04/2022 20:31
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O carioca Cadu Cinelli, 42 anos, é um homem pequeno e educado. Tem uma risada livre, que escapa a seus modos aristocráticos, próprios de quem nasceu na um dia capital do Império e da República – seja lá o que isso agora signifique. Também fogem a seu controle os cabelos, penteados pelo vento. Muito vento. Desde os 18, Cadu conta histórias ao ar livre, boa parte das vezes a bordo de sua bicicleta, batizada de Guadalupe. Foi ali, entre o guidão e o selim da incansável Lupe que construiu sua identidade múltipla – é artesão, ator, escritor, cicloativista e pesquisador.
A conciliação desse “tudo ao mesmo tempo” se dá na base da logística aplicada à cultura. Merece um manual. Cinelli marca um ponto – uma praça, um monumento, um prédio histórico – para que o público o encontre. Munido de um microfone e de uma caixa de som, comanda os que o seguem. Podem ser ciclistas como ele, patinadores, skatistas, adeptos dos patinetes e caminhantes que tenham sebo nas canelas. Simples assim. O cortejo vai, por ruas de moradia ou de comércio, enquanto o ator-autor compartilha duas ficções urbanas. A cidade se converte em livro, o livro que de fato é.
Num dos “Percursos Afetivos”, nome oficial projeto e título de um livro do artista, recém-publicado pela editora Kotter, Cadu conta, por exemplo, o último dia na vida de uma conterrânea sua – Gilda. Não, não se trata da travesti e moradora de rua Gilda, popular por essas bandas nos anos 1970-1980. Nos labirintos borgeanos da mente do seu criador, a carioca Gilda foi atraída pelo bairro do Bacacheri, como num romance. Era ufóloga. Disseram-lhe que vários óvnis tinham predilação por aquela parte da cidade. Mudou-se. Ali conheceu o marido e juntos trabalharam no Moinho Curitibano, aquele monumento à imaginação, na Rua Nicarágua. Até que tudo vira pó. Ela se despede da existência, morrendo a cada frase que sai da boca do contador de histórias. Não é preciso muita saliva para explicar a potência desse experimento cênico.
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Cadu Cinelli desembarcou em Curitiba, de uma vez por todas, como tudo indica, em 2017. Foi atraído por um amor, pelos muitos amigos que aqui vivem, e por que a capital paranaense lhe servia um banquete com duas iguarias que lhe abriam o apetite: o cicloativismo e a contação de histórias, dois movimentos nos quais somos tão bons quanto na arte da maledicência. O forasteiro não tardou a sair de braço dado com a turma da Bicicletaria Cultural, da Rua Presidente Faria, berço de arquitetos de um dos mais revolucionários microespaços de que se tem notícia – a Praça de Bolso do Ciclista, na boca da Rua São Francisco.
Paralelo, Cadu se viu descortinando um tesouro. A supostamente tímida e gélida Curitiba guarda um dos maiores contingentes de contadores de histórias por metro quadrado... do planeta. Nesse momento, numa creche, num evento ou algo assim, alguém está possuído pela figura do narrador. Cinelli, claro, encontrou a sua turma: “Quando eu era criança, escutava histórias na minha família, ao redor da mesa. Cresci, em busca de novas maneiras de contar histórias. Passei a pensar a cidade como um grande palco, como uma literatura expandida. Eu fazia muito disso pedalando. Caiu a ficha. Por que não conto as histórias que eu conto para mim mesmo?”
O movimento de contação de histórias não é monopólio curitibano, como pode parecer. Teve aqui o pioneirismo do também multiartista Carlos Daitschman. Encontrou terra boa para se desenvolver nos centros de educação infantil, nas universidades – no protagonismo da pesquisadora Marta Morais da Costa – e via Casa do Contador de Histórias. Tem hoje unanimidades como a irresistível Cléo Busatto. Mas o rabo deste cometa está em plena ditadura militar, que ironia, na década de 1970, em meio às militâncias poéticas dos visionários Affonso Romano de Sant’Anna e Francisco Gregório Filho. Os dois comandaram um arrastão, que mostrou que a escola não podia dar conta de toda necessidade de leitura que há no mundo. Valia tudo, inclusive história contada embaixo da árvore, no meio de um sertão, por alguém sem letramento formal, mas que tivesse garganta, nervos e coração para expressar um conto, um causo, uma poesia.
Cadu Cinelli em uma de suas maratonas ficcionais.
Cadu Cinelli em uma de suas maratonas ficcionais.
Anos depois, o estímulo à contação de histórias, por todos e em qualquer lugar, virou uma política pública, encampada pela Biblioteca Nacional, com o sugestivo nome de Proler. Não durou tanto quanto se desejava, mas o fato é que esse fogo resiste ao banho de água fria oferecido pelos sem alma. O grupo Os Tapetes Contadores de Histórias, do qual Cadu Cinelli é membro desde o já longínquo 1998, nasceu na esteira desse empuxo de popularização das narrativas, obra do Proler. Quanto ao “Tapetes”, tem método autoexplicativo. Equivale a voar pelas mil e uma noites. O encontro de Cinelli com esse modo de fazer literatura se deu sobretudo após uma oficina com o francês Tarak Hammam. Dali para frente, teve o estalo se substituir o tapete persa por uma bicicleta. Virou centauro e passou a maior parte da juventude sem endereço fixo.
Nem o próprio Cadu fez o balanço completo das terras por onde andou. Esteve no Peru, mais de uma vez, mas também na paranaense Cambará, no Norte Pioneiro. Some-se países como Austrália, México e Portugal. Ele vai lembrando das andanças, assim, como se arrancasse lenços da manga num número de mágicas para crianças. É desse laboratório que brotam muitas de suas ficções. Os próprios ouvintes lhe confidenciam fantasmas e fantasias, que se convertem em Gildas ou Marias, personagens cujo poder é fazer com que nunca mais olhemos para a rua em que supostamente viveram, sem lembrar delas. “Tem muito acaso. Tempos atrás, reencontrei um amigo. Ele me disse que ia tocar samba. Me falou do grupo do Colorado. Decidi falar dessa escola de samba de Curitiba”.
Cadu, aqui entre nós, é uma espécie de primo irmão do Nobel turco Ohran Pamuk, autor do Museu da Inocência, em Istambul, espaço “ficcional” apinhado de objetos, catados na rua, como um sapato com o salto quebrado ou uma bola furada. É ver e imaginar o que quiser. O local também guarda móveis e quetais que teriam sido usados por personagens do triângulo formado por Kemal, sua noiva Sibel e Füsun, a prima que ele ama. Os três são protagonistas do belíssimo romance homônimo, Museu da Inocência. Ao ver um armário velho, numa loja da Riachuelo, aqui em Curitiba, lembramos da bela Füsun. Cadu traz, para nosso museu imaginário, casas e esquinas um dia anônimas.
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Há paralelos entre as maratonas ficcionais de Cadu Cinelli e o escritor japonês Haruki Murakami, autor do conto que inspirou o oscarizado filme Drive my car, de Ryûsuke Hamaguchi. Na década de 1980, quando passou de dono de bar de jazz, em Tóquio, para escritor, Murakami começou também a correr. Foi longe, feito doido. Paralelo ao reconhecimento literário, tornou-se um corredor de longas distâncias, merecedor de medalhas no pescoço. Parte de sua experiência está relatada no filosófico Do que eu falo quando eu falo de corrida, publicado no Brasil pela Alfaguara.
Numa conversa qualquer, Cadu soube que seu combo de cicloativismo e contação de histórias tinha a ver com uma linha de pesquisa da pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bateu à porta e entrou, orientado pelo pesquisador de cartografia sensível Marcos Torres, da linha de pesquisa Produção do Espaço e Cultura. O projeto de doutorado que desenvolve veste o número de ambos. Cadu entrevista e observa entregadores de encomendas – em especial alimentos – para saber das ficções urbanas povoam a imaginação desses trabalhadores informais. “Eles constroem uma cidade enquanto circulam”, comenta, nosso piloto de tapetes voadores.