José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Dois abraços do Ali Chaim para você

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
07/06/2020 11:00
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Conheci o repórter Ali
Chaim da mesma maneira que outras pessoas da minha geração – assistindo ao Show da Notícia, telejornal do extinto
Canal 4, nos inícios da década de 1970. Eu era criança, daí a magia. Penso que
ninguém respirava na sala lá de casa, quando ele surgia na pele de seu
personagem, o Califa 33, legítimo herói de HQ. Na contraluz, de perfil – e com a
voz gutural curtida desde os 10 anos de idade, ocasião em que fumou seu
primeiro cigarro – Chaim contava histórias de crime, golpes e faits divers que faziam sombra a gente
grande, como Gil Gomes.
Meu pai – que conhecia o
Chaim dos bastidores da imprensa, na qual atuou em funções modestas – dizia que
o jornalista era a versão paranaense do “Homem do Sapato Branco”, quadro
semelhante e autoexplicativo, então em voga na imprensa paulista. Décadas
depois, quando conheci Ali Chaim de perto, comentei da semelhança entre o
Califa 33 e o cara do Sapato Branco, o Jacinto Figueira. Abominou a comparação.
Foi uma das raras vezes que o vi contrariado – o que significava caprichar nos
palavrões, sua especialidade. E, pensando bem, ele tinha razão. Nunca houve
ninguém como o Califa 33, alter ego
de Ali Chaim.
O Califa 33 bem pode ser
reduzido a um produto da televisão movida a lenha – amadora, com estúdios que
despencavam, equipamentos que entravam em combustão e dada a uma saraivada de
“cacos” pouco inspirados. O mesmo não se pode dizer do criador do Califa 33,
Ali Chaim, um sujeito nascido para ser... Ali Chaim. Criador e criatura andavam
de braço dado, eis a graça.
Não se trata de um
exagero retórico, próprio das efemérides. Quem o tenha conhecido, sabe da
originalidade do jornalista policial, que fazia ronda, madrugada adentro, a
bordo de um Fusca Branco. Era inconfundível. Nenhum inferninho, boteco pé-sujo
ou balcão de delegacia lhe parecia estranho. As criaturas da noite – seus
chapas. Poderia ter sido biógrafo da Blanquita ou da Otília, cujo ramo de
atividade deixo para sua imaginação, caro leitor. Circulava pelo bas-fond – expressão, aliás, dentre as
suas favoritas – com a mesma naturalidade com que era capaz de pisar num
convento. Onde estivesse, exerceria a maior de suas competências – a capacidade
de fazer perguntas tão simples quanto desconcertantes.
Algum apressado pode
argumentar que Chaim fazia o que qualquer repórter faz – perguntar. Sinto
desapontar. Ainda que preso à província, não é heresia nem nada colocar o
paranaense de origem austríaca e árabe entre os bons perguntadores brasileiros
– num panteão que tem de Geneton Morais Neto a Marília Gabriela. “O senhor não
tem vergonha na cara?”, disparou, certa vez, à queima-roupa, no ar, para um
médico acusado de desvio de dinheiro público. Quem de nós seria tão direto?
“Por que matar o cara
depois de roubá-lo? Já não bastava?”, diz a um preso, depois de lhe oferecer um
Minister – sua tática para puxar conversa – seguida de uma proposta típica de
um investigador: “Vamos ter um papo honesto?”. Também dava uma de terapeuta de
botequim: “Sua mãe sabe disso?”, seguido de um “me conte, o que deu errado na
tua vida?” Rolava choro em meio às confissões. Truques de carrapicho – rótulo
pouco elogioso dado aos repórteres de porta de cadeia? Não – isso era Ali Chaim,
com o que aprendeu na escola da vida, sem professor. O resto é caricatura.
Essas e outras perguntas à
queima-roupa estão registradas no documentário Califa 33 – uma colagem de imagens de televisão e de depoimentos
feita pelo cineasta catarinense Yanko Del Pino. A história é conhecida. Yanko
procurava imagens sobre o carnaval curitibano no acervo do Canal 4 doado para o
Museu da Imagem e do Som (MI). Encontrou parte do que esperava. Por outro lado,
deparou-se com fitas raras sobre as originalíssimas reportagens de Chaim, e também
trechos sobre a travesti moradora de rua Gilda, que deu origem a outro
documentário – Beijo na Boca Maldita.
Graças ao acaso, as novas gerações puderam conhecer Gilda, mas também Chaim, o
“irmão do Aramis Chain [com “n”] da livraria”, semelhantes no sotaque e nos
olhos claros, diferentes no humor e na irreverência.
**
Por duas vezes fiz o
teste de apresentar Ali Chain à mocidade. Comecei mostrando o doc Califa 33. Na sequência, busquei-o no
Hauer, onde morava, e carreguei-o para o auditório da UFPR. Sempre com o
coração na mão. Chaim não era adepto do politicamente correto, o que fazia
suspeitar que metade da audiência juvenil sairia porta afora, assim que ele falasse
das marafas, ao se referir a determinadas profissionais do sexo. Ou aos
“malacos”, cuja doçura com que pronunciava não apagava a crueldade da palavra. Não
aconteceu. Pelo contrário, semana passada, dia 27 de maio, quando Chaim morreu,
aos 81 anos, alguns daqueles a quem o apresentei me passaram uma mensagem.
Lamentavam. Tinham se encantado com o sujeito boa praça, com andar de gato,
unhas polidas, nariz de boxeur. Bastava
estar com ele uma vez para nunca mais esquecê-lo – mesmo os que estranhavam seu
vocabulário recolhido ora na porta da cadeia, ora na porta da delegacia.
Contradição? Necas – Chaim tinha ginga para pisar em dois extremos, sem sentir
vertigens. Um mestre na arte de ser ele mesmo.
O sujeito que dava duras
em policiais, em bandidos era o mesmo que defendia operárias de fábrica –
enquadradas por terem roubado retalhos. “Deixa a moça ir para casa”, cutuca o
policial, diante das câmeras, indignado com o absurdo da situação. Se seu senso
de justiça não nos capturasse, sempre haveria o espírito de paz universal, que
propagava com uso de pequenos chistes, com os quais presenteava todo mundo. Quando
a gente dizia “um abraço Chaim”, pronto respondia “dois”. Ou simplesmente nos
convocava a ficar mais um pouquinho em sua companhia, já que gostava de gente:
“Me paga um café”, pedia. Era uma ordem. Em qualquer balcão que encostasse, virava
o centro da cena. Gostava disso.
**
“Oi, é o Chaim...”, dizia
do outro lado do telefone. Não precisava nem se apresentar, é claro. Na última
década, o radialista, apresentador de tevê e repórter andava preocupado com o
esquecimento. Curtia a velhice, é verdade, ao lado de sua mulher, a advogada
Esmeralda, filha de um delegado, e dos filhos Ali, Camila e Omar. Mas se
encafifava com os rótulos. Para os mais velhos, continuava sendo o Califa 33,
mas também entrevistava médicos, advogados, cientistas, para a Rádio Educativa.
A quem duvidasse que tivesse outras figuras na agenda que não apenas chefe da
PM, sacava do bolso uma lista de fontes de primeira grandeza. “Conhece esse
médico, simpatia?”. Se a resposta fosse não, estapeava o próprio joelho,
indignado. Falava com as mãos.
Se me permitem a
comparação – Carmen Miranda não conseguiu tirar os jujus e balangandãs da
cabeça, John Wayne não conseguiu se desvencilhar dos cowboys, Lima Duarte não
deixará jamais de ser o Sinhozinho Malta. Chaim ficou preso ao sombra do Show da Notícia. Não que se incomodasse
de todo com isso – incômodo era não ser lembrado. Mas como todo jornalista
policial, sofria quando o rótulo soava como um diminutivo. Sua contemporânea,
Terezinha Cardoso – talvez a primeira mulher a cobrir o setor, ainda na década
de 1960 – lamentava que só recordassem dela por essa atividade “menor”. Tinha
sido pioneira na cobertura de saúde pública, por exemplo.
Sabedor de que fazia
história, Chaim guardava a maior parte do que produzia. Era, afinal, o repórter
da Loira Fantasma, para citar uma das lendas locais que levam seu selo. Diz-se
que é o inspirador, senão confidente, de muitos contos de Dalton Trevisan, o
Vampiro de Curitiba, seu amigo (assim como Paulo Leminski, que adotava o
“Turco”, como o chamavam alguns). Por essas, mantinha em casa um armário
apinhado de fitas cassete, filmes, quase tudo devidamente registrado. Quase
tudo. Nas vezes em que pude ver esse acervo, pensei em como seria difícil
salvá-lo sem o Chaim junto, recheando com suas memórias cada fita que mostrava.
Em tempo, a carreira de Chaim
começou em 1963, com o pseudônimo Lawrence da Arábia, na coluna Giro da Noite
do jornal Diário da Tarde. Para
desespero do pai, Hussein, um comerciante libanês bem-sucedido, o filho mais
velho, estudante de Contabilidade, saíra boêmio, notívago – uma natureza à
prova de sovas. Conhecia cada degrau da mítica Boate Marrocos, na Praça
Zacharias. Descrevia com requintes o dia de 1966 em que o ator Jardel Filho foi
expulso dali, escada abaixo. Mas a virada se deu em 1969.
Chaim trabalhava como mesário numa eleição quando flagrou pela janela da sala de apuração, na Praça João Cândido, dois valentões com os ânimos à flor da pele. Pôs um microfone pela janela, captou o arranca-rabo, completado pelos comentários hilários do próprio intrujão. Pois o som vazou numa rádio. No dia seguinte, ele era o Ali Chaim, um negativo da Curitiba dita cinzenta e de poucos sorrisos. O resto a gente já sabe. Curitiba tinha ganhado dos deuses o Ali Chaim, de quem sempre podíamos nos sentir amigos, pagar um café e saber que nos julgava merecedores não de “um abraço”, mas de “dois”. O Califa era assim – uma conta de mais. Era um cara do “carilho”, expressão sua – que fique registrado.

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