Personagem de Curitiba

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

É o carro do sonho que está passando…

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
17/05/2020 11:00
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O curitibano Luiz Carlos
de Paula, 52 anos, é grato a sua profissão: o comércio. Soma três décadas e
meia no ofício, tempo no qual criou os filhos Luiz Gustavo e Lucas, hoje seus
parceiros na lida. Não é tudo. Luizão – assim chamado em respeito a seus 125 quilos,
distribuídos em 1,87 metro – se diverte ao sair para trabalhar. Desconhece o
que seja estresse laboral. Ouvi-lo falar do expediente é passaporte para
gargalhar. Sugiro que na próxima edição do Risorama
– o evento de humor do Festival de Teatro – ele seja convidado para uma
participação especial. Entreteria fácil-fácil uma plateia com os “causo”
acumulados desde o dia em que, pouco mais do que um guri, recebeu do pai –
Oswaldo de Paula, o Paulão – o cajado do “carro do sonho”, sua fonte de renda,
de graça e de orgulho.
A história é mais ou menos conhecida – já foi tema do quadro Caçadores de Notícia, do jornal Tribuna do Paraná, reportagem da RIC, GNT e da série Vozes de Curitiba, na qual dividiu a cena com ninguém menos do que Teresinha dos Santos, a “Borboleta 13”. Ainda na década de 1970, seu Oswaldo – descrito pelos seus como “uma figura” – fez uma gravação de sua voz em fita cassete e a colocou para rodar numa caixa acústica, ou coisa que valha, em cima de um veículo. Saiu pelas ruas do Uberaba, bairro que é o pequeno reino dos De Paula, anunciando “verduras fresquinhas, para vizinhos e vizinhas”. Saiu-se bem, um inesperado radialista da madrugada.
Parece que um misto de tino comercial e intuição sopraram no seu ouvido, dizendo que deveria soletrar as palavras com a suavidade de um beijo. Nada mais justo. A “freguesia” ouviria a mensagem várias vezes – poderia se aporrinhar. No mais, os interessados também precisariam de tempo para desligar o fogão, botar as crianças no berço, catar uns trocados na jarra, cuidar para o cachorro não fugir pelo portão e alcançar o carro.
Tempos depois, por um
não-sei-o-quê qualquer, Oswaldo passou a vender sonhos, essa iguaria eslava que
mexe ao mesmo tempo com as papilas gustativas, a memória e a imaginação. Tem
açúcar, gordura, farinha branca – verdadeira maçã do Paraíso. O veterano fez
nova gravação, dessa vez com a frase que deveria ser estudada nos cursos de
Publicidade e Propaganda de todo o país: “É o carro – DO SONHO –que está passando,
fre-gue-sia...”
Para tristeza, a diabetes
lhe roubou a visão e forçou sua aposentadoria. Passou a chave do carro ao filho
Luiz. Atento, o herdeiro ouviu todas as recomendações sobre o “negócio”, como
se dizia, incluindo gravar sua própria voz, dita qual uma música, sem fazer
vírgulas na sequência “sonho de nata sonho de creme sonho de doce de leite
sonho de goiaba [pausa breve] O SONHO...”. Poesia concreta? Que o Augusto de
Campos nos responda.
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Luizão não fazia a mínima ideia do que lhe esperava. A dicção aveludada – quase pedindo licença para entrar na casa dos curitibanos – caiu no gosto da clientela. Outros vendedores a pediram emprestada, ou mesmo pagaram um valor simbólico de cenzão pelo direito de uso da fita cassete. Com o advento dos meios digitais, a reprodução da singela peça publicitária – digna das pequenas cidades do interior de São Paulo, que anunciam a “pamonha de Piracicaba”, ou as do sertão – que avisam no alto falante quem morreu naquele dia – virou um rastilho de pólvora. Estima-se que pelo menos 400 carros do sonho circulem na capital, de acordo com levantamento ligeiro da Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Não causa espanto se quase todos usarem a voz do Luizão, sem pedir licença.
O comerciante não recebe
um tostão furado – o que não lhe tirou até hoje um minuto de sono. “Sem
brincadeira”, avisa. “Eu me sinto útil. Bacana saber que minha voz ajuda tanta
gente a ganhar seu sustento”. Já lhe disseram para registrar, patentear, virar
o Valdir Pipoqueiro, mas nada. Para quê? A popularidade da gravação lhe rende
um arsenal de situações divertidíssimas, contadas à mesa do almoço, ou na roda
de amigos. Uma dessas, em particular, ele adora “pro-vo-car”. Volta e meia,
estaciona perto de um carro do sonho, que não o dele, e pergunta para o
motorista quem gravou aquele anúncio. “Meu pai”, garantem, desconfiados. Ao que
Luizão abre os braços imensos com um sonoro: “Então vem cá. Me conta quem é a
tua mãe. Não sabia que você era meu filho”.
Uma de suas melhores anedotas
do cotidiano é a do rival que passou a se apresentar como “o rei do sonho”.
Pois Luizão parou do lado, passou a mão no microfone, e se autoproclamou “o
príncipe do sonho”. A disputa acabou em tapinha nas costas e dicas das melhores
freguesias. Ao ouvi-lo, poço de simpatia, não causa espanto que desarme os
reclamões, como o morador de um prédio que gritou da janela: “Você tem licença
para vender?” Ao que respondeu, um lorde: “Com licença, senhor: posso vender?”
Ganhou um sorriso em troca. O filho Gustavo se junta à roda. “Um senhor desceu
do prédio e reclamou comigo da chatice da gravação”. A peleja durou pouco: “Me
dá logo dez sonhos, que é para você ir embora de uma vez...”. Final feliz.
Nem tudo são flores,
claro. Luizão já recebeu telefonema de hospital – ralhando que o carro do sonho
estava atrapalhando o repouso dos pacientes. Restou-lhe explicar que a voz é
dele, mas que está bem longe dali, no Rebouças, ou no Juvevê, dois de seus
pontos mais contumazes. Certa feita, um motorista ambulante achou um cachorrinho
perdido e levou para casa. Foi visto e, batata, uma criança entrou em febres ao
perder seu bichinho de estimação. Pois acharam o Luizão, e reivindicaram o pet, como se fosse ele o culpado. Virou
uma odisseia. Acionou os contatos, rodou a cidade atrás de quem soubesse do vendedor
que adotou o cãozinho e o resgatou tarde da noite, devolvendo-o, numa cena digna
de programa de auditório.
Há momentos bem menos heroicos,
mas igualmente gratificantes. No ouvido da clientela, o “carro sonho” vira com
frequência “o carro dos sonhos”, na acepção de “sonhar”. Não raro a freguesia
paga a conta e confidencia num suspiro que a gravação “alegrou o dia”. “Eu
estava deprimida”, dizem as gurias a Luizão, terapeuta sem honorários. Aliás,
as falas de Luizão são um delicioso jogo de duplos sentidos: ele “vende sonhos”;
diz que tem por aí quem não venda “sonhos bons”; informa que vendeu “uma
centena de sonhos” em duas horas...”. Vai-se da nata para as nuvens em
segundos. Do lockdown à pós-pandemia.
**
Em tempo, os De Paula –
incluindo outros parentes que se aventuram nas vendas – comercializam uma média
1,5 mil sonhos por dia, ao custo de “3 reais cada ou quatro por 10 reais”. A
produção é da empresa criada por um cunhado, “Fábrica de Sonhos Alfa”, cujo
nome foi incluído na gravação by Luizão,
essa exclusiva. “Freguesia... sonho Alfa”. O reclame também inclui o sabor
“chocolate”. Creme e nata são os preferidos. O menos popular é o de goiaba, mas
como é um clássico, permanece em catálogo. E para quem acha que a família não
aguenta mais ver sonhos à mesa, um engano. Todos são consumidores convictos.
“Eu ainda como dois
sonhos por dia”, avisa Luizão, ao acarinhar a pança. Não que lhe falte apetite.
De uns tempos para cá, reserva espaço para as empadinhas – que aos poucos se
somam ao cardápio da empresa. Tempos atrás, o patriarca tentou o cachorro
quente, vendido na madrugada. Não caiu no seu gosto. Prefere as tardes, que
talvez por serem longas e incertas, pedem o consolo de um doce. Sem falar do
calor humano. Não faz muito, ao descobrirem ser ele a voz do carro do sonho, teve
de posar para selfies, no
estacionamento de um supermercado. Nessas ocasiões, pedem-lhe uma palhinha: “É
o carro... do sonho... que está passando... freguesia...” Mesmo quem não compre,
se imagina com a boca suja de creme, sem pecado e sem juízo. Alguns, quem sabe,
ao ver o carro deixam acordar algum sonho adormecido. Pois sonhar é preciso.

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