José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Eduardo Drechsel, um mestre à sombra

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
24/09/2017 21:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O consultor e administrador de empresas Eduardo Artur Drechsel, 71 anos (foto), o Tuti, não lembra bem o mês e o ano em que o episódio se deu – mas da cena não esquece nem com sonífero. Fellini teria dores de cotovelo. Foi na década de 1950, na Rua São Francisco – ainda conhecida como Rua do Fogo, apelido que qualquer imaginação fértil pode decifrar. Em pleno sábado, houve acúmulo de casamentos na capital. Uma fila de noivas se formou na porta da Foto Progresso. Vinham ruidosas, de braço dado com seus maridos recém-promovidos, véus e grinaldas ao vento, anel reluzente no dedo.
Havia pouco tinham cruzado a nave de uma igreja, levadas por seus pais, e dito “sim”. Suspeita-se que com uma condição. Antes de cortar o bolo, dançar a valsa, jogar o buquê para as amigas e partir para a lua de mel, queriam tirar um retrato no mítico estúdio da família Weiss, na Rua São Francisco, 164 – endereço da Foto Progresso.
O sobrenome Weiss tinha pedigree – uma grife, como se diria hoje. Ao lado dos Jacobs da Foto Brasil ou do Francisco Gortz, o Chicão, da Foto São Paulo, ambos então em atividade na Rua XV, os Weiss se notabilizavam não só por revelar a Elizabeth Taylor escondida no rosto das gurias, ou o que havia de Paul Newman nos marmanjos. Eram também bambas em pictorialismo, a arte de retocar e colorizar negativos, com os préstimos mágicos do breu, da terebentina, de um lápis e do próprio olho. Pelo menos na pena dos mestres do clã Weiss – gente como Augusto, José e Alberto – os casamentos pareciam eternos.
Não tome, caro leitor, esse texto por um rocambole. Mas é preciso falar dos fotógrafos da família Weiss – objetos de uma exposição na Casa Romário Martins, com exemplares do acervo particular do fotógrafo Orlando Azevedo – para tratar de um outro mestre do ofício: o germano-brazuca Eduardo Drechsel, pai do Eduardo Artur, o que não esquece das noivas em fila na Rua São Francisco. Que o texto de hoje lhe faça justiça.
Eduardo Drechsel – morto em 2011, passado dos 90 anos – era uma figura discreta, vinda dos interiores de Santa Catarina para fazer a vida no Paraná. Quis o destino que cruzasse a Rua Riachuelo, descesse a São Francisco e batesse na porta da Foto Progresso, de onde só sairia com os cabelos brancos e as pernas cansadas, por força dos ditames da natureza. Criou laços de sangue com aquele lugar. Jovem, ao chegar, caiu doente de morte e foi cuidado pelos Weiss, como se fosse um dos seus. Anos depois, retribuiu a gentileza, cuidando de uma filha e de um genro do patriarca da família, dia a dia, até que se fossem. Parece filme, merece um.
Àquela altura, não se tratavam mais como patrão e empregado – eram sócios. A mudança de contrato entre Drechsel e Weiss se deu por volta de 1957. Ao ser convidado para ter seu nome no recibo de notas da Foto Progresso, conta-se, correu para casa e chorou feito criança, diante da mulher, Elizabeth Grohs, e dos sete filhos. Fez valer cada minuto da promoção. Dá para contabilizar sua virtude: ao todo, calcula-se que tenha passado quase meio século atrás do balcão, tempo em que clicou as gentes de Curitiba e região – do nascimento às exéquias, nada lhe parecia estranho. “A São Francisco era um lugar para nascer, crescer e morrer”, brinca o filho Eduardo, ao falar da rua que dispunha de maternidade a funerárias, e fotógrafos para registrar tudo isso.
Permitam-me um recuo no tempo – como prova de que não há exageros. Na década de 1980, o português Orlando Azevedo, radicado no Paraná, conquistou na marra a amizade de Alberto Weiss – então um desiludido, à espera de um chamado dos deuses. A história foi narrada aqui com o título “O baterista de A Chave e seu amigo alemão”. Num desses acasos, em 1989 o mesmo Orlando salvou do desaparecimento parte do incomensurável acervo da Foto Progresso, candidato ao lixo e ao esquecimento. Arrematou quase duas toneladas de material, incluindo 3,5 mil chapas de vidro.
O material registra a vestimenta e – como não – o comportamento das famílias curitibanas de boa parte do século 20. É do mesmo modo um documento sobre a urbe, pois são fartas as imagens dos arredores, em especial da triste sina dos pinheiros derrubados para abastecer a indústria moveleira. Some-se que a Foto Progresso foi protagonista de um dos episódios mais conturbados do passado curitiboca. Em março de 1942, populares depredaram o estabelecimento, sem dó, em meio a um surto de germanofobia, motivado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra.
Eduardo Drechsel ainda não estava lá, mas era como se estivesse. Passou a vida ouvindo narrativas sobre aquele dia de atentado não só aos Weiss como contra o museu de imagens que produziam. Reproduziu o episódio aos mais próximos, sempre com a tristeza de um combatente. E ele mesmo deu sua larga contribuição para salvar tal arquivo dos rodapés. Drechsel engordou esse museu de imagens fotográficas a cada vez que operava sua máquina Linhof (hoje num museu na cidade de Rio Negro) ou quando saía a campo a bordo de uma Rolleyflex. Seu nome, contudo, não recebia créditos – algo comum então. No verso das impressões, ganhava o anonimato a cada vez que ali se colocava um carimbo – “Foto Progresso”. E por Foto Progresso leia-se “Weiss”.
Em miúdos, Eduardo Drechsel foi um mestre à sombra do sobrenome Weiss, mas essa condição, até onde se sabe, não lhe tirou um minuto de sono. Tímido e reservado – um sujeito de pouca conversa –, aflorava feito um colegial quando o assunto era fotografia. Para o ofício não economizava horas. Dominava todas as etapas – campo, revelação, retoques, para os quais utilizava as lições aprendidas com ninguém menos que Estanislau Traple. No álbum de família aparece sempre pelos cantos, mas aparelhado. Mesmo de férias em Guaratuba – e não havendo noivas, piazotes em trajes de primeira comunhão, foliões ou alguém em desespero atrás de um 3×4 –, empunhava sua máquina e saía a campo. Debaixo de suas vistas, o Litoral do Paraná ficava bem melhor do que realmente é.
Quando as fotos de estúdio caíram de moda, Drechsel começou a passar os sábados na porta das igrejas, à mercê das chuvas de arroz, exposto ao assédio dos convidados. Dispunha de todas as técnicas de caretas e frases espirituosas, feitas para arrancar sorrisos. Custou a se cansar – ou talvez isso nunca tenha acontecido. Teve a desdita de assistir à Foto Progresso virar Foto Sakamoto. Retirou-se. A velhice selou um encontro com a pintura em telas, distribuídas na casa dos descendentes. Seus modelos, as fotografias produzidas na mocidade e na vida adulta. Era um servo da fotografia.
É provável que não tivesse intimidade com nenhum dos teóricos que trataram da “realidade portátil” permitida por essa invenção. Nem Roland Barthes, nem Susan Sontag. Mas é possível afirmar que qualquer um desses intelectuais adoraria ter conhecido o homem que se entregou ao fascínio do registro fotográfico. Eduardo faz parte de um grupo, aliás. É volumoso, surpreendente e forma uma casta na cinza Curitiba. Difícil fazer uma lista sem cometer deslizes. Além dos Weiss, do “Chicão” Gortz, de Erich e Walter Jacobs, do apaixonante Isaac Kruger, a lista passa por Erwin Jacobs, o Bubi, alquimista que deixava todo mundo bonito nos retoques. Pela pioneira Nini Barontini. Por Cid Destefani – que, além de fotografar, apressou-se em salvar, em 1959, a produção de um dos muitos estúdios de fotografia da cidade, a Foto Kabsa. Ali começou a coleção Destefani, formada pela assombrosa marca de 500 mil imagens.
Essa era a turma do Drechsel, o do canto da foto, à sombra.