José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Em busca do best-seller da pandemia

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
20/09/2020 19:00
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Ano passado, em um congresso de Comunicação, pude
conferir uma pesquisa interessantíssima assinada pela jornalista Eliane
Hatherly Paz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na contramão
dos estudos sobre livros proibidos pela ditadura de 1964 – assunto que conta
com uma bibliografia robusta –, Hatherly se debruçou sobre o que os brasileiros
leram naquele período, em especial durante o raio de influência do AI-5, de
1968 a 1978. Sua fonte foi a lista dos “mais vendidos” da Veja, revista lançada com alarido naquele 1968, sob o rótulo de nossa
versão da Time americana.
Quem viveu pelo menos uma parte do fim dos 1960 e
início dos 1970 se identifica de pronto com o que aparece nas listas. Uma obra
do naipe de Eram os deuses astronautas?,
de Erich von Däniken, não só circulou de mão em mão como entrou para o nosso
vocabulário. Rendeu muito sarro. Vê-la citada na pesquisa, aliás, traz à mente
outros best-sellers que acompanhavam
a cesta – a exemplo de Triângulo das
Bermudas
, do norte-americano Charles Berlitz. O livro sobre aviões e navios
que sumiam na América Central – tragados por uma força cósmica – rendeu, claro,
matéria do Hélio Costa no Fantástico.
E onde nesse imenso Brasil houvesse três bares próximos em que os bebedores
pudessem bater ponto, a região logo seria apelidada de “Triângulo das
Bermudas”. Das listas também faziam parte O
exorcista
, de W. P. Blatty, e, para compensar o gosto pelo ocultismo, o
fofo Fernão Capelo Gaivota, de
Richard Bach. Sorry, quem não leu não
viveu. É bem facinho, bem fininho.
Livro a livro da lista, vai-se deduzindo que as sombras da política nacional e internacional se projetavam nas escolhas dos leitores. A década de 1970, debaixo da música dos Carpenters, do Abba e dos Bee Gees, foi deliciosa na largura da barra das calças, nas estampas psicodélicas, nos cabelões, saltões e óculos de lentes verdes, igualmente gigantescos. Mas trazia a reboque as incertezas da Crise do Petróleo, os conflitos no Oriente Médio, o escândalo de Watergate, as tirânicas ditaduras latino-americanas. Ponha na conta o preço da carne e o Esquadrão da Morte. Depois de tudo, a Aids. O clima era propício para as crenças de que algo sobrenatural regia o planeta – daí o sucesso sem medidas de autores pseudocientíficos como Von Däniken e Berlitz. E o medo do diabo de Blatty. Para compensar, havia a aposta na beleza escondida, explorada por Richard Bach; o escapismo de campeões de audiência, como Morris West e Sidney Sheldon; e o Relatório Hite, sobre sexualidade feminina, que dispensa explicações. Ah, quem não lia Love story, de Erich Segal, estava fora do bailinho da garagem.
Durante a ditadura, as sombras da política nacional e internacional se projetavam nas escolhas dos leitores
As listas da revista Veja eram comerciais, nutridas por informações de livreiros e
editores, a partir do movimento dos seus respectivos balcões. Mas, para
surpresa, não vinham pontificadas apenas por literatura fácil, cujo efeito era
o de calmante de maracujá. Ao esoterismo, autoajuda e à extraordinária
literatura cor-de-rosa – que só permitia ser largada na última página – também
se somavam sucessos densos, assinados por dois latinos porretas, Mario Vargas
Llosa e Gabriel García Márquez. O “realismo mágico” emergia, por certo, como uma
luva para aqueles tempos de atrocidades, na Argentina e na nossa esquina. Em
tempo – foi quando As veias abertas da
América Latina
, de Eduardo Galeano, chegou para ficar.
Dos autores brasileiros, ia-se do onipresente Jorge
Amado – no melhor de sua forma –, passando por Clarice Lispector, Ignácio de
Loyola Brandão, Érico Veríssimo e José Mauro de Vasconcelos, mas também gozavam
de boa saúde nas estantes os pensadores da nossa desgraça e gente disposta a
usar o abridor de lata nas mentes e corações. A ilha, de Fernando Morais, arrebentou. Some-se Carlos Castello
Branco, Sobral Pinto, os Chicos – o Buarque e o Anysio –, Millôr Fernandes e
Leon Eliachar... A conclusão de Eliane Hatherly Paz é de que os brasileiros se
divertiam em inglês e se preocupavam em português. De quebra, a pesquisadora mostra
a urgência de se perguntar o que se esconde por trás do best-seller.
***
Responder exige se desvestir de preconceitos. Um sucesso editorial de qualidade – a exemplo de O velho e o mar, de Ernest Hemingway; O nome da rosa, de Umberto Eco; e Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu – tende a provocar orgulho da raça humana. Mas são tão enigmáticos quanto o estrondoso desempenho de O Código Da Vinci, de Dan Brown – também conhecido como o livro mais abandonado em estações de metrô, aeroportos e rodoviárias. A propósito, Eco dizia duvidar que tantos milhões de terráqueos tenham se interessado por uma história medieval feito O nome da rosa. A obra mais badalada do ensaísta, romancista e semiólogo italiano teria sido mais comprada do que lida.
De modo que há sempre uma sociologia da leitura para
ser descascada. Essa é a delícia da coisa – entender por que há três gerações
os jovens se sentem representados por Feliz
ano velho
, de Marcelo Rubens Paiva. E por que, de tempos em tempos, os
deuses astronautas e o Triângulo das Bermudas se atualizam em solenes
“roubadas” como O Código Da Vinci. O
leitor e suas escolhas são sempre um teatro de sombras. Resta dar um tapinha
nas costas nos malandros que acham moleza montar esse cubo mágico. Necas.
***
“Ainda é cedo amor” para falar dos livros mais
vendidos da pandemia. As listas estão cheias de curvas e incertezas. Bebem em
fontes como o site da Amazon, mas também nas informações das redes que
sobrevivem bravamente na Terra brasilis. No
mais, acaba de sair a edição 2020 da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – e com ela a informação de que os
mais ricos leem cada vez menos, uma contabilidade ainda à espera de explicação.
Seguremos as pedras nas mãos.
De qualquer modo, os resultados preliminares dos livros mais-mais provocam reações bipolares – entre o duvidar o cair do queixo. A peste, de Albert Camus; O amor nos tempos do cólera, de García Márquez; e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, são escolhas tão surpreendentes quanto óbvias. Impõem-se pelas associações entre os temas de que tratam e a praga dessa Covid, mas estão longe de serem leituras de acalanto.
O leitor e suas escolhas são sempre um teatro de sombras
O mesmo se diga das “mais lidas” cuja escolha pode
ter sido pautada pelo desejo de criar um jogo de espelhos com a realidade
reservada para a gente nos noticiários. Daí a onipresença nas listas de 1984 e A Revolução dos Bichos, ambos de George Orwell; Demian, de Herman Hesse (autor que
muitos julgavam lido apenas em redutos hippies perdidos por aí) e de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury – esse,
tarefa para leitores bem sambados. De qualquer modo, a regra de ouro é nunca
duvidar da fúria que move quem decidiu vencer um livro. A pandemia, arrisca,
vai criar o clube dos que se atiraram de cabeça em Guerra e paz, de Liev Tolstói. Em suas fileiras, a atriz e
escritora Fernanda Torres, que já escreveu sobre sua experiência e tranquilizou
quem ainda está com medo: classificou a obra como uma ótima novela das nove e, grifo meu, infinitamente melhor do que Fina estampa. Nem Torloni salva.
No mais, o rei da festa é Thiago Nigro – autor de Do mil ao milhão sem cortar o cafezinho.
Nada a declarar, a busca de respostas rápidas às finanças se impõe. Como os
deuses talvez fossem astronautas, resta o consolo de ver Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro, bagunçando as
listas. Ah, soube que O mez da grippe,
do Valêncio Xavier, vende como pão quente. Se Valêncio estivesse vivo, diria: “Me
colocaram nos cornos da Lua”. E, nem aí para o sars, cantaria um trechinho de Fly
me to the Moon
, com sua inconfundível voz de Pato Donald. Se nesses dias a
gente lesse tanto quanto chora, o mercado editorial sairia do vermelho.

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