José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Escreva, mesmo que trancado no banheiro

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
30/05/2020 22:00
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Arte: Felipe Lima

A pergunta é... dá para escrever durante a pandemia? Desde que o coronavírus bateu à nossa porta, estabeleceu-se uma nova polarização – como se não bastasse a velha, que segue em altas temperaturas. De um lado, o saber se recolher – com tudo de mais elevado que esse verbo inspira. De outro, botar para quebrar: ler o que não for lido, limpar o que estava encardido, exercitar-se feito um Hércules, fazer de tudo para ser – ao fim de tudo – o rei ou a rainha do home office.
[Me permitam, não vou polarizar com os que foram jogar conversa fora no bar esquina, sem máscara, porque essa questiúncula pertence a outros departamentos: o psiquiátrico e a comissão do Juízo Final que, faço votos, será inclemente.]
De volta ao ponto, escrever exige recolhimento. Por ironia, um gênero escasso em tempos de isolamento social. Não que seja impossível produzir literatura – ou algum parente dela – no meio do barulho. Redações de jornal costumam ter poluição sonora acima do normal, por força do ofício. Mas foi numa delas, a do jornal Última Hora, que Nelson Rodrigues produziu as crônicas da coluna “A vida como ela é”, um clássico brasileiro, ou pelo menos assim se podia dizer nos tempos em que éramos um país.
Na biografia O anjo pornográfico, Ruy Castro conta que Nelson, imagino que a bordo de uma Remington e cigarro preso nos lábios, perguntava aos repórteres, alto e bom som – “nome de corno?”. Ao que alguém, do outro lado da sala, respondia “Gusmão”. Pronto, o marido traído de alguma Ritinha estava batizado, em meio aos estampidos das máquinas de escrever, à sinfonia dos telefones, aos berros abusados dos chefes de então.
Pois essa barulheira
parece refresco perto da que temos de enfrentar na quarentena em casa – esse
espaço pequeno e aconchegante que se mostrou o inimigo da vida do espírito. Uma
cela de cadeia concorre a ser mais propícia às Letras do que uma moradia com
pai, mãe, filhos e pets. Alguém com
prazo para entregar um texto – podendo ser o texto uma bosta ou uma peça de
Rodrigues, Otto Lara Rezende ou Marina Colasanti – tem como abstrair o som ao
redor e se atirar à obrigação. O mesmo não se diga da brincadeira de
rodar-rodar-até-cair instalada pelo mundo digital, esse inquilino exigente,
ansioso e desaforado. Nossos lares são uma central de conexões, não raro em
curto circuito.
A esfera privada e profissional migrou para o whatsapp e para um sem número de aplicativos de reuniões, cujos convites nos atropelam antes e depois das refeições, na hora do vaso e no momento do banho. Não há trégua, pois cada sinalização de mensagem – mesmo que ignorada – atinge em cheio o sistema nervoso. Esses estímulos nada têm de sexy. Antes, pedem duas doses diárias de Prebictal. Some-se às sirenes de guerra que assaltam nossos celulares, as obrigações impostas pela Covid-19. O troca-troca de sapatos, roupas; a higienização contínua das mãos e a neura com as sacolas do supermercado produzem um efeito lisérgico. Provocam torpor – são Lucy in the Sky with diamonds. Um erro, e baubau. Claro – de tudo isso, nada atenta mais contra os anseios produtivos – o que inclui os literários – do que o noticiário sobre as mortes. Pedem silêncio mínimo – uma “contrição humanitária” –, mas o trem do cotidiano digital não tem pena, nem dos que se foram nem de nós.
O saldo da quarentena será de muitos escritos. Quero acreditar que os dias de solidão e tormenta vão deixar como legados poemas, romances, pensatas, roteiros.
Mesmo assim – com tudo
contra o recolhimento, e com tudo contra a produtividade, um glorioso empate – pode-se
apostar que o saldo da quarentena será de muitos escritos. Quero acreditar que
os dias de solidão e tormenta vão deixar como legados poemas, romances,
pensatas, roteiros. Há em cada um de nós algo de Henry David Thoreau – o
naturalista do século 19 que se autoexilou numa floresta para provar dos
limites do isolamento, descrito no magnífico livro-testemunho Walden. Essa afirmativa vale mesmo para
o mais atarantado dos isolados, que usa mãos de Shiva para dar conta das novas
rotinas.
Quando ligados no “modo Thoreau”, observamos de nuvens a samambaias, como há muito não fazíamos; percebemos a divina comédia humana, entre a pia e a máquina de lavar roupas. Confessemos, andamos doidos para deixar umas mal traçadas linhas sobre esse momento que entrou para a biografia dos 7 bilhões de hóspedes do planeta – exceto para a do ministro Salles, que merece ser transferido para Marte.
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Confesso não saber se todas aquelas dicas de autores, sobre a boa escrita, são companheiras ideais para esse momento. Podem ter efeito desmancha-prazeres, promover uma luta de facas. Talvez a literatura durante a pandemia mereça ser sem amarras – intuitiva, passional, confessional, sem vírgula ou crase, sem pecado e sem juízo. Não se espera que os textos de quarentena fiquem na estante ao lado de Os Lusíadas, de Camões, mas guardados numa gaveta, como um diário ou um testamento sobre as palavras que juntamos, qual um quebra-cabeça, em meio ao que parece uma interminável reunião ministerial de 22 de abril, não por acaso Dia do Descobrimento do Brasil. Se existe uma dica, a dica é essa, à moda Gilberto Gil – a sua escrita, ame-a e deixe-a ir aonde quiser.
Riscos? Todos. Risco de,
no susto, produzir uma página imortal da literatura; ou de daqui uns meses lermos
o que foi produzido e deduzirmos que estávamos em meio a um surto pandêmico, do
qual nos desculparemos. Restará suspeitar que alguém colocou Cloroquina no nosso
café, pois só um porre medicamentoso para justificar o disparate que escrevemos.
Paciência: basta lembrar que narrar, agora, é um imperativo. Avise a família
que precisa escrever e se tranque no banheiro, se preciso for.
Para os mais exigentes
com os resultados – replico o que ouvi certa vez do escritor e crítico Miguel
Sanches Neto. Ao se referir às dificuldades dos autores em neutralizar,
digamos, a “sofrência interior” (grifo meu), sugeriu que tinha gente que
“escrevia chorando”. Logo, escrever chorando... never. Lágrimas são um veneno, uma tirania da fraqueza. Até porque
os diários de Frida Kahlo já foram escritos e ninguém fará melhor.
Como sou chorão, levei
para casa a observação do Miguel. Escrever aos prantos redunda em manipulação
do leitor, que se sente obrigado a gostar do que leu – mesmo que não –, só para
não se sentir insensível diante da dor dos outros. Nos bons anos em que
trabalho com ensino de redação, perdi as contas das vezes em que reproduzi para
os alunos que a carne viva, ao contrário do que parece, não ajuda a literatura
e o jornalismo. Melhor, antes lamber as feridas. Ou pelo menos essa norma vale
para os mortais, como nós, sem imunidade contra a pieguice.
Admito que muitos pupilos
desobedeceram – a maioria desses escreveu textos chorosos, que mantinham o
público inerte, como num velório. Alguns desobedientes, claro, assinaram peças
incríveis. Mordi a língua. O que mais lembro é uma narrativa autobiográfica
sobre uma decepção amorosa, assinada por uma jornalista que tive a alegria de
encontrar na sala de aula e orientar. Disse a ela que aquele tema, naquele
momento, não ia dar certo. Errei. A autora usou o riso e a autoironia como
antídoto, fazendo da sua dor uma sombra, da qual intuímos a existência e a
intensidade enquanto gargalhávamos. Sim, ao brincar com a ambiguidade fez literatura,
fazendo o que desejava.
De resto, use mais pontos
do que vírgula. Não exagere na “primeira pessoa” – a gente se perde em viagens
ao redor do próprio umbigo. Não use punhos de renda nem golas engomadas para
escrever – quem se leva muito a sério fica chato pra diabo. Fale do que conhece
e dê ao outro, generoso, como alguém que joga euros ao vento. Não esqueça que o
leitor não sabe tudo o que você sabe – logo, conte a ele, mas sem ser
professoral, pedagógico ou autoritário. Quem nos lê está de ombros com a gente.
É um igual a quem amamos. Tampouco se veja como um religioso: ninguém escreve
nem lê para ser uma pessoa melhor, mas para brincar na beira do abismo que
somos nós.
No mais, desconfie da
qualidade do que produziu se sua mãe disser que foi a melhor coisa que ela leu
na vida. Se ela chorar, então, aiaiai, comece tudo de novo.