José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Escreva, mesmo que trancado no banheiro
Arte: Felipe Lima
parece refresco perto da que temos de enfrentar na quarentena em casa – esse
espaço pequeno e aconchegante que se mostrou o inimigo da vida do espírito. Uma
cela de cadeia concorre a ser mais propícia às Letras do que uma moradia com
pai, mãe, filhos e pets. Alguém com
prazo para entregar um texto – podendo ser o texto uma bosta ou uma peça de
Rodrigues, Otto Lara Rezende ou Marina Colasanti – tem como abstrair o som ao
redor e se atirar à obrigação. O mesmo não se diga da brincadeira de
rodar-rodar-até-cair instalada pelo mundo digital, esse inquilino exigente,
ansioso e desaforado. Nossos lares são uma central de conexões, não raro em
curto circuito.
O saldo da quarentena será de muitos escritos. Quero acreditar que os dias de solidão e tormenta vão deixar como legados poemas, romances, pensatas, roteiros.
contra o recolhimento, e com tudo contra a produtividade, um glorioso empate – pode-se
apostar que o saldo da quarentena será de muitos escritos. Quero acreditar que
os dias de solidão e tormenta vão deixar como legados poemas, romances,
pensatas, roteiros. Há em cada um de nós algo de Henry David Thoreau – o
naturalista do século 19 que se autoexilou numa floresta para provar dos
limites do isolamento, descrito no magnífico livro-testemunho Walden. Essa afirmativa vale mesmo para
o mais atarantado dos isolados, que usa mãos de Shiva para dar conta das novas
rotinas.
no susto, produzir uma página imortal da literatura; ou de daqui uns meses lermos
o que foi produzido e deduzirmos que estávamos em meio a um surto pandêmico, do
qual nos desculparemos. Restará suspeitar que alguém colocou Cloroquina no nosso
café, pois só um porre medicamentoso para justificar o disparate que escrevemos.
Paciência: basta lembrar que narrar, agora, é um imperativo. Avise a família
que precisa escrever e se tranque no banheiro, se preciso for.
com os resultados – replico o que ouvi certa vez do escritor e crítico Miguel
Sanches Neto. Ao se referir às dificuldades dos autores em neutralizar,
digamos, a “sofrência interior” (grifo meu), sugeriu que tinha gente que
“escrevia chorando”. Logo, escrever chorando... never. Lágrimas são um veneno, uma tirania da fraqueza. Até porque
os diários de Frida Kahlo já foram escritos e ninguém fará melhor.
para casa a observação do Miguel. Escrever aos prantos redunda em manipulação
do leitor, que se sente obrigado a gostar do que leu – mesmo que não –, só para
não se sentir insensível diante da dor dos outros. Nos bons anos em que
trabalho com ensino de redação, perdi as contas das vezes em que reproduzi para
os alunos que a carne viva, ao contrário do que parece, não ajuda a literatura
e o jornalismo. Melhor, antes lamber as feridas. Ou pelo menos essa norma vale
para os mortais, como nós, sem imunidade contra a pieguice.
desobedeceram – a maioria desses escreveu textos chorosos, que mantinham o
público inerte, como num velório. Alguns desobedientes, claro, assinaram peças
incríveis. Mordi a língua. O que mais lembro é uma narrativa autobiográfica
sobre uma decepção amorosa, assinada por uma jornalista que tive a alegria de
encontrar na sala de aula e orientar. Disse a ela que aquele tema, naquele
momento, não ia dar certo. Errei. A autora usou o riso e a autoironia como
antídoto, fazendo da sua dor uma sombra, da qual intuímos a existência e a
intensidade enquanto gargalhávamos. Sim, ao brincar com a ambiguidade fez literatura,
fazendo o que desejava.
do que vírgula. Não exagere na “primeira pessoa” – a gente se perde em viagens
ao redor do próprio umbigo. Não use punhos de renda nem golas engomadas para
escrever – quem se leva muito a sério fica chato pra diabo. Fale do que conhece
e dê ao outro, generoso, como alguém que joga euros ao vento. Não esqueça que o
leitor não sabe tudo o que você sabe – logo, conte a ele, mas sem ser
professoral, pedagógico ou autoritário. Quem nos lê está de ombros com a gente.
É um igual a quem amamos. Tampouco se veja como um religioso: ninguém escreve
nem lê para ser uma pessoa melhor, mas para brincar na beira do abismo que
somos nós.
qualidade do que produziu se sua mãe disser que foi a melhor coisa que ela leu
na vida. Se ela chorar, então, aiaiai, comece tudo de novo.