A informação de que Curitiba chegou a ter a assombrosa marca de 4,8 mil vilas impressiona uma pá de gente. O dado foi divulgado pelo Ippuc, há pouco mais de uma década, e ainda deixa os queixos caídos. Mesmo os mais velhos, acostumados a dizer que foram visitar uma tia, ali, na “Vila São Jorge”, ou que deram um pulo na “Vila Formosa”, se impressionam com a quantidade de locais da capital um dia identificados, sei lá, com aldeias do século 19. Até o elegante Champagnat, quem diria, foi uma vilinha chinfrim, lá para os lados do Bigorrilho. Do que se deduz que é no mínimo divertido pensar a cidade como uma Praça Tiradentes cercada de vilas por todos os lados.
A definição das novas divisas da capital paranaense, reduzida da constelação de 4 mil e tantos lugarejos a 75 bairros, só manteve um desses espaços oficialmente com nome de vila: a Vila Isabel. Por ironia ou por um milagre do mercado imobiliário, a “Isabel” foi alçada ao posto de um dos metros quadrados mais proibitivos de CWB. Exceção à regra, né. Mas teve chão. Há 40 anos, a palavra “vila” desapareceu do mapa numa canetada do prefeito, mas demorou uma era geológica inteira para sumir do vocabulário dos moradores. Até vigorar a lei do mais forte. Alguns continuaram conversando com vizinhos, pelo muro, sobre a sua vida e sua vila – a Guaíra, a Fanny ou a Guilhermina –, mas a modernidade venceu as carroças da Vila Diana, substituídas pelas torres da Ecoville – uma bocejante vila vertical habitada por desconhecidos.
Fim de papo? Necas. A memória, como se sabe, é um deus teimoso e imprevisível. Vira e mexe, as vilas voltam à cena, nem que seja para dar nome a um novo condomínio de luxo. Lembro – e bem – de uma ocasião em que o crescimento desmiolado da cidade, beirando até 7% ao ano, fez com que urbanistas cogitassem ressuscitar as vilinhas, por força de terem poderes sobrenaturais. Menores, mais intimistas, saudosos, esses lugares poderiam ajudar bairros gigantescos, de mais de 150 mil habitantes, a reencontrar uma escala humana. Nos “pequenos lugares”, as relações de vizinhança, essenciais à saúde da urbe, seriam promovidas com mais facilidade, inibindo a violência e a solidão. Talvez esse efeito colateral explique a teimosia da permanência de endereços como a “Vila Ismênia”, no elegante bairro do Hugo Lange; a “Vila Cubas”, no Novo Mundo; ou a “Vila São Paulo”, no Uberaba.
A proposta do revival ficou na intenção, mas isso não quer dizer que tenhamos desistido, que sabe um dia, de viver num pedaço do mapa que pode ser enxergado num flash, percorrido com uma centena de passos. E onde é possível conhecer os moradores e os mendigos pelo nome. Quem já viveu num cercadinho assim, parece, sente saudade. Penso que é o caso da pedagoga curitibana Adriana Tortato, que em parceria com o primo Emerson Pereira de Araújo e a amiga de escola Márcia Herrera, acaba de escrever um livro sobre a “Vila Leão” – local com a qual está ligada até o umbigo.
Aos distraídos, informo que a Vila Leão começa onde o tradicional bairro do Portão termina. Sua fronteira “era uma vez” a linha do trem que cruzava a cidade. Diferente de outros endereços, o centro nervoso da comunidade não era um shopping nem um parque, mas a Escola Municipal Papa João XXIII, uma das melhores do município, digna de destaque nacional, etcetera e tal. Ah, e como o nome diz, nessa vila pequerrucha e muito engraçada moravam – por benesse do patrão – operários da Leão Júnior, a Matte Leão, indústria sem a qual não se entende lhufas da história do Paraná. Só isso.
Suspeito que pelo menos parte dos moradores da Vila Leão sabiam ser coadjuvantes – ou a cozinha – de uma potência capitalista transnacional. Dou esse “chute” a gol porque meus parentes, assim como ocorreu com Tortato, também tiveram suas vidas marcadas por aquelas parcas ruelas dos baixios da Zona Sul. Uma rua em especial – a Frei Gaspar Madre de Deus, precisamente no número “68”. Hoje, ali funciona uma faculdade, mas por quase 60 anos foi o endereço de dona Maria Marta Gomes Henriques, também conhecida como “a bordadeira da Vila Leão”, minha avó.
Dona Marta e mais de uma dezena de outros vileiros ilustres são perfilados pelo trio de autores, com encantos de uma conversa no sofá. Entrevistas, fotografias, mapas serviram de documentação para o projeto que, sei não, bem podia levar ao tombamento da Vila Leão. Patrimônio imaterial. É que exceto pelo “Papa”, sobrou pouco da paisagem fabril de mil-novecentos e bolinhas. Já nas lembranças – sai de baixo. Os depoimentos do livro sacodem a poeira do tempo e reentronizam as vilas no posto das boas ideias. Aplausos.