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José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Glauco e Glenio: a irmandade Sá Brito

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
26/08/2022 13:46
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O engenheiro aposentado e escritor Paulo Sá Brito tinha 20 anos quando soube, por vias tortas, da morte de seu tio, o multiartista Glauco Flores de Sá Brito. O ano, 1970. Uma temporada de gripe – causa mortis de Glauco – amedrontava Curitiba enquanto a turba cantava “90 milhões em ação”, o hino da Copa do Mundo, pelas esquinas das Marechais. Era como se houvesse amanhã.
O nome de Glauco soa algo familiar para os paranaenses mais moços, pois batiza desde 1975 uma minúscula sala do complexo Teatro Guaíra, na Praça Santos Andrade. Não se pode dizer o mesmo das circunstâncias em que Paulinho, como é chamado pelos amigos, recebeu a notícia da partida do parente e padrinho, a quem chancela como “eterno professor”. É história da vida privada. E História do Brasil.
O jovem Paulo estava na clandestinidade, com nome falso, vivendo um dia de cada vez num aparelho de resistência à ditadura civil-militar, instalada no país em 1964. Era integrante do núcleo revolucionário Ação Popular; em breve amargaria seis meses de prisão política. Sentia-se muito mais perto da morte do que o tio Glauco, daí a surpresa. A informação do falecimento veio cerca de uma semana depois do ocorrido, por meio de uma amiga, que tinha informações privilegiadas sobre o esconderijo do curitibano às voltas com a guerrilha urbana. Trilha sonora? “Can’t take my eyes off you” (I love you baby).
“Eu até escrevi um poema sobre como fiquei sabendo da morte dele”, relata Paulinho.
O fato é que o medo, a morte e a arte uniram tio e sobrinho, de uma vez por todas. Os Sá Brito choraram Glauco. A classe artística verteu rios de saudade. A boemia curitibana – na qual “o falecido” batia ponto, feito Quincas Berro D’Água, por pouco não declarou luto de três dias. Mas coube a Paulo, o rebento rebelde que elevara ao cubo a simpatia dos Brito pela esquerda, ficar com duas pastas de escritos inéditos do tio. Ali estavam rascunhos e projetos assinados pelo intelectual, um gaúcho de nascimento e cosmopolita por natureza que nunca conseguiu se desvencilhar da provinciana capital paranaense onde viveu.
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Glauco tinha 50 anos quando partiu. Foram vividos a mil rotações por minuto. As tais pastas são apenas um aperitivo: ele deixou incontáveis críticas de teatro publicadas em jornais, como O dia, no qual atuou; 182 teleteatros e 11 telenovelas que fizeram a alegria do povo nos tempos da TV a manivela, entre 1961 e 1966. Não estão nessa conta as anedotas cabeludas que bolava, pândego, e os amores furtivos, daqueles que não dizem o nome.
Lá se vai meio século que Paulinho ocupa o papel de guardião da memória de Glauco Flores de Sá Brito. Desempenha a tarefa com graça peculiar. Sabe ser litúrgico e iconoclasta, passando sem escalas da emoção ao riso, um direito adquirido pela intimidade. É um refresco. Fora a vivacidade que esbanja ao falar do tio, nada de muito extraordinário se deu entre a gripe que matou Glauco e a gripe que por pouco não matou todo mundo. Dá um cagaço danado de que o jornalista, poeta, dramaturgo e agitador cultural Sá Brito morra outra vez, na forma de uma placa amarelada no frontão de um velho teatro.
É fato, sim, que esse homem estranho circula ligeiro por alguns contos de Dalton Trevisan, amigos que eram, parceiros nas lides do teatro experimental no Guaíra. E que um dos grandes amigos de Glauco, o advogado Eduardo da Rocha Virmond, tenha lhe feito justiça ao publicar, em 1997, pela Secretaria de Estado da Cultura, o inestimável Poesia reunida, coletânea dos livros O marinheiro, de 1947; O cancioneiro amigo, de 1960; e do póstumo Azulsol. Não é preciso ser expert para reconhecer ali um dos nomes de proa do verso moderno.
Resta lidar com a sombra do esquecimento. Não faltam planos para afugentá-la – ora partem da também afilhada e profissional do setor cultural, Mônica Berger, filha do ator Aristeu Berger, grande amigo de Glauco; ou do cineasta Fernando Severo, que confidenciou ter vontade de documentar em película essa trajetória. Não estão blefando: há ingredientes de fato para promover um revival em torno do escritor que tirou o cheio de mofo de Curitiba, desde sua chegada em 1937, ao lado do irmão Glenio, dois meninotes sem eira, saídos das margens do Rio Guaíba.
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Os manos traziam uma “história de vida” digna daquelas canções esparramadas do conterrâneo Teixeirinha. Ou que seja, de Lupicínio Rodrigues. Os Sá Brito perderam a mãe muito cedo. O drama se agravou quando o pai fugiu com uma prima. Os dois e uma irmã provaram então daquele empurra-empurra destinado aos órfãos. Acabaram adotados por uma avó, que vivia nas cercanias de Porto Alegre. Depois da morte dela, viraram inquilinos em casa de parentes, pensionatos, até serem atraídos a Curitiba por um tio, Fernando Flores, ligado ao interventor Manoel Ribas. Ganharam empregos em repartições e salvo conduto para se entregar à cultura, como conta Paulo num de seus livros, Antes que chegue o outono (2014), biografia romanceada do pai, Glenio.
Parte do apetite literário da dupla vinha das tertúlias, praticada na família mesmo que a despensa estivesse às moscas. Formam-se intelectuais por autodidatismo. Aos 9-10 anos, Glauco edita um jornalzinho à mão, chamado O garoto, no qual contava as fofocas da cidadezinha de Montenegro e publicava as primeiras poesias.
Cada um aplacava a fome a seu modo. Glenio era um leitor discreto, desses “à luz do abajur”, como diz o filho, um pensador e “poeta de inutensílios”, excentricidades em meio às incumbências de pai de quatro filho. Glauco – que chegou a trabalhar no sistema prisional e fez carreira com soldos razoáveis na Assembleia Legislativa – transforma a solteirice em seu sagrado matrimônio. Casou-se com o Teatro Guaíra, mas teve paixões paralelas, como o jornalismo diário (um García Márquez das terras frias, sempre pronto a pesar a mão nas narrativas), e a recém-nascida televisão no Paraná. Notabilizou-se como autor na pré-história das telenovelas.
Não é leviano dizer que Glauco ficou em Curitiba porque aqui conseguiu um bom emprego, sorte para quem cresceu sem dinheiro para o bonde. Mas a cidade também abasteceu sua literatura, tal e qual acontecia com o amigo Dalton. Frequentador da noite, conhecia todos os pecadores da paróquia, habitués da Boate Marrocos e demais inferninhos. “Os bares eram praticamente seu único gasto”, ilustra Paulo, ao calcular que o supermercado do tio vinha na forma de drinques e carteiras de cigarro – que consumia em escala industrial, hábito que agravou seu ingresso na eternidade.
Dá para imaginá-lo. Andava em ternos, sempre salpicados pelas cinzas dos “arranca-peito”, que mantinha no canto da boca enquanto falava. Morava no mais curitibano dos endereços à época, o Edifício Brasilino de Moura, na Rua Cândido Lopes, 205, conhecido como “Balança-Mas-Não-Cai”. Tinha um Gordini, conduzido pelo sobrinho ou por amigos, pois não se tem notícia de que soubesse onde ficava o freio, a embreagem e o acelerador. Os óculos eram fundo de garrafa.
Na repartição era rígido, fama de durão. Na arte, tinha proximidade com o crítico de arte Walmir Ayala, e com o ator Sérgio Brito; trocava cartas com os poetas Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Certa vez, em viagem a Porto Alegre, disse a Paulinho. “Hoje você vai conhecer o Carlos Scliar”. E lá se foi o rapazote das Mercês mais o tio para a casa de um dos maiores designers e pintores brasileiros. Quanto à boemia, neste cercadinho se mostrava um soberbo contador (“e inventor”, diz Paulo) de anedotas.
A habilidade o transformava no centro das atenções em lugares como o Café Belas Artes, um dos templos em que batia cartão nos anos 1940. Entre suas especialidades, as então chamadas “piadas de bicha”, apimentadas por serem, como se diria hoje, o “lugar de fala” de Glauco. Ela era homossexual, os mais próximos sabiam, e os preconceitos se resolviam à moda antiga: um não conta e o outro não toca no assunto. A arte do escracho e a dicção ciciada, péssima, se encarregavam do resto. “Meu pai adorava pedir para o Glauco declamar o ‘Perdigão perdeu a pena’, do Camões, só para sacanear. Ficava péssimo.”
Tudo indica que nosso chapa era um sarro – o que Paulinho confirma. Observador emocionado da amizade que uniu Glauco e Glenio, a ponto de o segundo cair de cama ao saber da morte do irmão, o sobrinho-afilhado guarda recordações hilárias da irmandade Sá Brito. Depois do almoço, pareciam cochilar ao mesmo tempo e na mesma sintonia. Até despertarem “engraçadinhos”, prontos para um duelo sobre quem inventaria a piada mais escandalosa. Depois de rirem às pampas, jogavam gamão ou se recolhiam às palavras.
Paulo, que pleiteava ser escritor, costumava mostrar ao tio os primeiros poemas e via, em segundos, o adorável dar lugar ao abominável homem das neves: “Dizia que era uma porcaria. Metia a caneta. Me dava a aula”, lembra, com afeto, o guardião das flores de Glauco.