José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
“Instantes mágicos” na pandemia
serviço – reconhecem que as longas horas entre quatro paredes têm levado muita
gente a retirar das gavetas retratos, gravuras, bordados, postais de viagem e
reproduções de santos. Muitos santos. Um dia, quando o coronavírus for passado
– e para isso torcemos –, talvez os decoradores se debrucem sobre o fenômeno da
entronização das imagens sacras ao longo de 2020. As próprias moldureiras me
contaram, animadas, do Santo Antônio, trazido pelos parentes da Polônia, talvez
há um século, agora recauchutado e recolocado no centro da sala. Tem merecido mais
mimos que um sobrinho. Como faço parte dos devotos do Toninho – e não me
perguntem por que, pois a graça é justamente não saber –, a prosa rende. Nada
como conversa fiada para descansar das agruras do noticiário.
Um dia, quando o coronavírus for passado, talvez os decoradores se debrucem sobre o fenômeno da entronização das imagens sacras ao longo de 2020
rejuvenescimento da iconografia católica. A maior parte dos santos e santas
fundadoras de ordens e congregações religiosas ganhou uma camada de botox.
Reparem. Um dos que mais me impressionam é são Marcelino Champagnat, fundador
dos irmãos maristas. Lembro da figura contrita, magérrima, arqueada – marcas da
penitência e do cansaço físico provocado pelo cuidado com as crianças
necessitadas. Hoje, Marcelino é um “pão”, como se dizia – rosado, bem penteado
e sorridente, por certo mais atraente aos jovens que praticam fitness e
valorizam a felicidade como medida de todas as coisas. Ou pelo menos é o que
dizem aos gerentes de RH, que negam emprego aos que se confessam calados,
pensativos e depressivos vez ou outra.
do rejuvenescimento atinja o grosso da iconografia. E que não se trata apenas
de tornar os santos mais atraentes para as novas gerações – ou mesmo de
livrá-los da fleuma romântica, que os retratava como sofredores, quando eram por
certo felizardos por suas escolhas e deviam soltar algumas gargalhadas, entre
uma troca e outra de cilício. Penso que uma certa infantilização tóxica ronda a
imagem dos santos, da Virgem e de Jesus Cristo. Só falta Deus, que permanece um
senhorzinho barbudo, de humor no limite e que se levanta tarde.
assunto que se trate assim, de enfiada. Sofreu sofisticações e simplificações a
cada crise iconoclasta, provocadora de cismas aqui e ali, séculos a perder de
vista. A tentação é acusar o pentecostalismo de responsável pelo dilúvio de
baboseiras que incentiva a prática ingênua da fé. O investimento carismático no
“Cristo Garçom”, que corre para nos atender em necessidades burguesas, fez
estragos. Mas talvez não seja muito diferente das imagens barrocas, teatrais,
emocionais, criadas por deuses-artistas da Contrarreforma. A vantagem era que o
Êxtase de Santa Teresa (século 17)
foi assinado por Bernini e eu não sei o que fazer com a reprodução de um
Coração de Maria, à Romero Brito, que minha mãe insiste em manter na parede.
Minha rebeldia é que não lhe trocarei a moldura.
que vale uma tese. Diante de uma pilha de retratos antigos, em preto-e-branco,
que levei para fazer quadros, disse que “as pessoas antigamente não sorriam
para as fotos”. Falou com conhecimento de causa, em nome das muitas fotografias
de família que têm lhe chegado todos os dias.
Abrir um álbum de família equivale a cair no buraco de Alice. O que parecia registro dos tempos em que se morria de apendicite ganha aura de enigma a ser decifrado
maneira de olhar as coisas simples da vida. Qualquer cena de Malhação, com pessoas numa lanchonete,
rindo e se tocando, parece uma lembrança das existências passadas. Nesse
contexto, abrir um álbum de família equivale a cair no buraco de Alice. O que
parecia registro dos tempos em que se morria de apendicite ganha aura de enigma
a ser decifrado. A Covid-19 mexeu com nosso olhar.