José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Janete era hoje

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
17/02/2023 12:26
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Dias atrás, soube da morte da minha vizinha Janete. Era uma mulher formidável e tenho a impressão de conhecê-la “desde sempre”. Quando minha família se mudou para a Água Verde, no jurássico ano de 1968, ela já estava lá. Por uns poucos metros nossos muros dos fundos não faziam divisa. Bem lembro de vê-la conversando com dona Clélia Carraro – outra moradora antiga – em meio às roupas no varal. Saudades? Ainda morro disso.
Pois o bairro se verticalizou, a moradia de dona Clélia deu lugar a um prédio, cuja sombra matou a grama do nosso quintal. Só a Janete permaneceu – a voz rascante, com um marcado sotaque curitibano, os chinelos que se arrastavam pelos paralelepípedos, os braços carregados de compras feitas por ali mesmo. Some-se o lindo coque de cabelos brancos e o cigarro entrededos. Parecia um retrato antigo – uma Olívia de Havilland anônima, uma eslava sobrevivente de guerra. Acho que não teve quem não lhe pedisse para que parasse de fumar, ao que respondia com um sorriso de desprezo. Tinha passado dos 80 anos, que não lhe enchessem o saco.
Creiam – desde abril de 2008, quando essas crônicas começaram, planejava perfilar a conhecida. O texto tinha até título: “Minha vizinha Janete”. Tal como tive a honra de fazer com outras pessoas que conheço desde guri, a exemplo do seu Darci Rosa, o “negro Rosa”, pretendia aplicar a máxima do jornalismo humanizado: “alguém interessante mora ao lado”. Meu trabalho era contar que havia bem perto uma mulher generosa, funcionária pública aposentada, solteira, tia do Celso, amante da mesa farta e da conversa fiada. Morava numa casa de madeira e plantava cactos no jardim – suspeito que para não perder tempo tendo de molhá-los. A grandeza de Olga Janete Winagraski estava no tamanho palpável de suas alegrias. Tudo o que queria, alcançava – bastava ir à padaria.
Numa das últimas vezes em que falamos, foi engraçado. Corria no nosso pedaço de mundo – as poucas quadras cruzadas pela Brasílio Itiberê e pela Petit Carneiro – que a nossa Janete não queria tomar as vacinas contra a Covid-19. Furdunço geral. Seria preciso uma força tarefa municipal. Ponto para ela, que até então tinha vencido, na unha, todas as questiúnculas que lhe impunham: não deixava da saracotear por seu minúsculo planeta, apesar das imposições de uma doença crônica, nem de torrar dinheiro no comércio, nem de fumar. Não seria diferente com a imunização.
Fui até seu endereço, na Rua Tenente Max Wolf Filho, disposto a convertê-la. Deparei-me com uma cena típica: ela conversava pelo muro com um amigo taxista. Entrei na miniconvenção de duas vozes negacionistas. Ouvi tudo, como se acreditasse. Pedi desculpas por me intrometer – a presa era braba – e falei que a levaria ao posto, nós de braço dado, dois namorados, se assim quisesse. Me passou um solene sabão. Depois disse “obrigado”, pelo tardio pedido de namoro. Tempos depois, em outro esbarrão na calçada, me disse que “tinha se resolvido”, ido ao posto e feito a bosta toda. Rimos. Minha vizinha de uma vida inteira estava de bom humor... e vacinada.
Não faço a mínima de quem alcançou a proeza. O fato é que tivemos uma deliciosa sobrevida de Janete. Todos sabiam que ela estava doente, de que nem a pau haveria milagre. Até que num estalo a paisagem mudou. Restaram as memórias e, para mim, a amargura da entrevista que não houve, por pura barbeiragem. Já aconteceu outras vezes, é claro, quase sempre com velhos. Carrego nos ombros a frustração de não ter cantado melhor a dona Élia, da Avenida Getúlio Vargas – que soltou os cachorros no meu calcanhar. Também me martirizo por não perceber que dona Nilza Lançoni, quase centenária, em breve viraria uma esquecida personagem de García Márquez.
Por essas, senti-me obrigado a estudar a psicologia dos velhos – recorro à obra da antropóloga Mirian Goldenberg e aos saberes da amiga jornalista Marleth Silva, que entende pacas desse riscado. Aprendi uns trecos: não peçam aos mais vividos que façam o papel de “velhinho power”, sob medida para tolas reportagens de tevê. Há dores nas costas demais e muito dinheiro deixado no balcão da farmácia. Janete, que não fazia discursos sobre o bem-viver, diante dos problemas preferia dizer “outra hora eu te explico”. Resolvia tudo por procuração: dava um olé no presente, pois amanhã haveria morte certa. Ela foi “hoje”, por oito décadas a fio. Palmas.