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Lange de Morretes se mudou para a Rua Kellers

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26/05/2019 19:00
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A arqueóloga Claudia Parellada e algumas das 700 peças que foram doadas ao Museu Paranaense por parte de familiares de Lange. | Leticia Akemi/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A arqueóloga curitibana Cláudia Inês Parellada costuma brincar que seu currículo – “uma joia”, como se dizia – só vai estar completo no dia em que encontrar a ossada de uma “preguiça gigante”. Ri da própria piada. Ela soma incontáveis expedições Paraná adentro, e nada do bicho. Por isso segue em frente, debaixo das bênçãos de São Coronel Fawcett e de uma de suas admirações confessas, o também arqueólogo Igor Chmyz, aposentado da UFPR. A energia de Cláudia, acreditem, bambearia as pernas desses dois heróis.
Mulher pequena – de ancestrais
catalães –, fala a mil rotações por minuto. Gesticula tanto quanto. E mantém os
dois olhos miúdos em posição de ataque. Nada lhe escapa – varetas à mesa, forma
sinapses, com amostragens apaixonadas de sua vasta cultura. Se não a seguram,
engata a primeira de sua Duster e vai atrás de uma lasca de pedra, encontrada
na estradinha que se esconde atrás daquela serra. Seu aparente estado de curto-circuito
– típico dos que sabem que uma escavadeira pode arrombar a festa a qualquer momento
– não a redime dos efeitos do acaso. Costuma ser tomada de assalto. Foi o que
aconteceu no segundo semestre de 2017.
A direção do Museu Paranaense – onde a doutora Parellada é pesquisadora de carreira – recebeu uma doação de objetos arqueológicos que teriam pertencido a um dos gigantes da ciência e das artes plásticas no Paraná, Frederico Lange de Morretes (1892-1954). Explicar a trajetória do lote de peças é de dar vertigens – passa por Inhotim, lá pelas bandas enlameadas de Brumadinho, nas Minas Gerais. “Vocês têm três-quatro dias para pegar”, ouviu. O fato é que Cláudia colocou o pai, seu Lázaro, no banco de passageiros e se mandou para o bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde viveu Berta, uma das filhas de Lange, pesquisadora da USP. Então recém-falecida, era profissional devotada. Diz-se que orientou pesquisas mesmo tendo passado dos 80 anos. O interior da casa estava em desmanche. Cláudia foi recebida por uma sobrinha-neta da cientista, Yara Marchi, incumbida da doação.
Além de sua importância histórica, o material tinha um “valor agregado”. Uma das lendas mais repetidas no meio acadêmico – até quase virar verdade – é a de que a coleção de 250 mil conchas de propriedade de Lange de Morretes teria virado caliça para calçar o Museu de História Natural, no bairro Capão da Imbuia. Sumidades como o geólogo João José Bigarella e arqueólogo Oldemar Blasi gostavam de repetir esse episódio, como mote para ilustrar a crueldade contra a ciência. O que não é uma alucinação, como os últimos [ou fim dos] tempos podem comprovar. Mas o massacre dos moluscos em si, acredita Cláudia, não aconteceu. As peças guardadas por Berta, filha de Lange, eram uma prova disso. Em vez de revestimento de piso, boa parte da coleção original teria sido vendida para a USP, para sanar finanças dos Lange. Outra parcela ficou diluída nos acervos do Museu Paranaense e no Museu de História Natural, misturando-se ao material doado por outros pesquisadores.
Ao ver são e salvo um
pouco do que julgava ter virado poeira, Cláudia se deu por satisfeita. E ficou ainda
mais ao perguntar se podia levar o material na caixa original em que estava
guardado. Simples assim. Foi quando a “preguiça gigante” lhe apareceu.
Convidada a ir ao porão do sobrado, em busca do recipiente, viu uma mala de
viagem quase tão grande quanto um caixão de defunto, etiquetada com os
seguintes dizeres: “Museu Paranaense – Lange de Morretes”. Sentiu-se um
carteiro do além. Caiu de joelhos e chorou sem parar. Seu Lázaro não sabia o
que fazer. Yara Marchi deve ter suspeitado que teria de fazer algo.
A mala – em parte
convertida em papinha de cupins e paraíso dos mofos – tinha pertencido a Lange
e, calcula-se, ficou guardada no escurinho por pelo menos 60 anos. No seu
interior, pincéis, panos para limpá-los, palhetas de pintura e tintas secas, estudos
de anatomia, xilos e litos. Numa das repartições, textos datilografados ou à
mão, “rabiscados 1,5 mil vezes”. São romances, trabalhos científicos e escritos
de ordem pessoal. “Houve uma conspiração para esta mala chegar aqui”, repete.
As pesquisas preliminares de Parellada permitem dizer que o material todo – algo próximo de 700 itens – seria trazido para Curitiba – daí a etiqueta – assim que Lange conseguisse um lugar para morar na capital paranaense, de onde tinha se mudado na década de 1930, depois de um arranca-rabo com ninguém menos que o interventor Manoel Ribas. A bronca foi estendida ao colega de ofício José Loureiro Fernandes. Tornaram-se inimigos íntimos. Só lhe restou botar a viola no saco.
São Paulo o acolheu, abrindo-lhe a comunidade científica. Mas ocorreu que no início dos anos 1940, a sombra dos pinheirais deu de lhe fazer falta. Lange passou a praticar com apetite um bate-e-volta São Paulo-CWB, não raro a convite do amigo de todas as horas, o fotógrafo e cineasta João Batista Groff. Ao lado dele sentia tudo, menos tédio. O retorno às pesquisas no Museu Paranaense se tornou um fato, mas a lua-de-mel com o Planalto durou até janeiro de 1954, quando Lange morre, aos 62 anos, depois de uma expedição científica pelo Litoral.
Era então um gênio
arruinado. Vivia num quarto de pensão sem banheiro, no Centro de Curitiba, e
não tinha gorjeta para dar ao engraxate. Os amigos não lhe negaram o “último
desejo”, expresso em testamento. Foi enterrado na cidade natal, Morretes, em
pé, com a cabeça voltada para o Pico Marumbi. O túmulo foi todo decorado com
conchas. Assim permanece, secula
seculorum
.
Detalhe: a mala, seu conteúdo e outros objetos da casa de Berta Lange estavam prometidos a um antiquário. Ao saber disso, a emoção de Cláudia atingiu níveis picassianos e almodovarianos. “Sou uma pesquisadora Alice [no País das Maravilhas]. Quem faz o que eu faço sabe que a maioria das coisas desaparece com a ação do tempo. O arqueólogo trabalha com possibilidades muito pequenas. Mas me nego a ser pessimista. Preciso acreditar que algo se salva, que vamos achá-lo. Vi que aquela mala poderia trazer à luz muitas informações”, diz. “É como se Lange estivesse ao meu lado.”
Mais detalhe: aquela bagagem um dia foi arrumada por ele, com o intuito de trazê-la de volta a Curitiba e, quem sabe, doá-la ao Museu Paranaense. Não podia perder a chance. Adivinhem? A negociação durou algumas horas – até que um Whats resolveu o imbróglio. A família Lange permitiu que a mala do antepassado ilustre seguisse seu destino. Na noite do dia seguinte, para que o sol não maculasse o material que esperou seis décadas para ser resgatado, a arqueóloga e o pai pegaram a BR-116. Lange de Morretes finalmente voltava para o ninho.
Lange é uma das figuras mais fascinantes da vida paranaense. Mas o exotismo do sujeito que quis ser enterrado em pé – fato repetido a torto e a direito – pode ter lançado pó-de-mico em sua biografia. Frederico era o que se chama de um homem renascentista. Deixou alguns romances – de explícito cunho autobiográfico, como Vidas paralelas, ficcionalização de seu encontro na Alemanha com uma professora de canto orfeônico, mãe de seus quatro filhos. Fazia boa pintura – arte cultivada em dez anos de residência em cidades como Leipzig e Munique. Fez-se músico diletante, mas sobretudo um malacólogo reconhecido internacionalmente. Produziu tanto e com tamanha qualidade que sua trajetória está sempre em aberto.
A própria mala guardada
pela filha Berta o comprova. Ali estavam algumas telas sem chassi, enroladas,
prontas para desmentir quem achava ser Lange nada mais do que um pintor
paranista à margem de seu mestre, o norueguês Alfredo Andersen. O material
mostra que a pincelada moderna fazia parte de seu repertório. E que curtia uma
desobediência estética. “Eu já mostrei essas telas à crítica de arte paranaense
Maria José Justino. Disse a ela que a história pode ser modificada”, conta
Cláudia, sobre a revelação.
Se na arte e na ciência Langue era um azougue, o mesmo valia para seus exercícios do amor. Boêmio, arrasava corações. Alguns moluscos que catalogou ganharam o nome de mulheres com que flertou. Não era de fato um animal doméstico – e pagou o preço de suas escolhas. Não desfrutou, por exemplo, do cargo de “professor vitalício” do Gimnasio Paranaense. Conta-se que seus superiores se incomodavam com a mania de levar os alunos a campo. Brigou. Flanou. Estudou. Apaixonou-se. Tudo o que ele era estava na mala, resumo de sua ópera. Coube a Cláudia Parellada achar – e suplicar para que os restos “não mortais” de Lange de Morretes ganhassem o endereço ao qual estava remetido: “Museu Paranaense”. Hoje Rua Kellers, 289, São Francisco, Curitiba, PR.