José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Levi Mulford – “meninos, eu vi”
esses dias, fomos assaltados pela notícia da morte do jornalista curitibano Levi
Mulford Chrestenzen.
Foi no sábado, dia 29, de causas naturais. Tinha 91 anos, completados no mês de
julho. Suspeito que muitos dos que o conheceram o julgavam eterno – ou pelo
menos desejavam que o fosse. Ninguém é insubstituível? Pois essa máxima não se
aplica a esse cidadão dos pinheirais. Figura na lista dos amados – como Helena
Kolody.
teve a satisfação de abrir um jornal impresso. O nome do jornalista foi
entintado nas páginas da Paraná
Esportivo e da Tribuna do Paraná por
mais de seis décadas. Era de perder as contas as vezes em que ouvia seu nome na
redação, vindo da ruidosa equipe do esporte. “Liga por Levi, porra”. Mais eis
que numa ocasião – meio mágica – não sei por que diabos a repórter esportiva
Adriana Brum passou do meu lado, exalando energia – e me falou algo como “você
precisa conhecer o acervo do Levi Mulford”. Passou o fone e virou as costas,
pois tinha mais o que fazer.
Levi Mulford Chrestenzen somava duas forças da natureza. Era um futebolista e boleiro das melhores castas. Ao mesmo tempo, sua pulsão encontrou freios em outro papel, o de colecionista disciplinado
que dali em diante nunca mais deixei de descrever, todas as vezes que me vi
obrigado a contar algo extraordinário que a vida de reportagem me reservou. Quanto
mais Levi me enfurnava nos, calculo, quase 500 metros lineares de material
sobre futebol, mais me perguntava como a turma que cobria esportes, o que nunca
foi o meu caso, tinha conseguido “naturalizar” aquele espaço sem similares.
Exceto por Adriana, não lembro de outro jornalista ter chegado à redação e dito
“meninos, eu vi?”, como no poema “épico” I-Juca
Pirama, de Gonçalves Dias. Pois é o que a gente sente quando pisa no acervo.
A explicação para essa aparente apatia, claro, não é um bicho-de-sete-cabeças.
A imprensa esportiva estava perto demais dele para enxergar que era digno de um
documentário assinado, sei lá, pelo João Moreira Salles ou pelo Marcelo
Masagão.
que Levi Mulford Chrestenzen somava duas forças da natureza. Era um futebolista e boleiro
das melhores castas. Como escreveu o romancista Cristovão Tezza, essa devoção
vem das zonas irracionais, de modo que, grifo meu, explicá-la equivale a
assassiná-la. Pois é o caso – a paixão futebolística desse homem parecia
ilimitada, irrestrita, imponderável. Ao mesmo tempo, a pulsão de Levi encontrou
freios em outro papel, o de colecionista disciplinado. Tal figura existe em
todas as partes do planeta, mas no Brasil ganha contornos peculiares. Num país
continental como o nosso – onde até hoje há pouco mais de 3 mil bibliotecas
públicas para mais de 6 mil municípios, onde um gênio controverso como Monteiro
Lobato fazia o livro chegar aos rincões colados a vidros de xarope –, muitos e
muitos se acostumaram a guardar todo e qualquer material de leitura. Precaução que
vira mania. É incurável.
chegava em casa com um suplemento esportivo que o jornal Gazeta do Povo
publicou durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. O piá se encantou
com aquilo – e não é de se espantar. Penso que o tal suplemento (que está na
coleção) merecia ser reimpresso em edição fac-similar, por sua importância para
a memória e a sociologia do esporte. Suponho que era editado em parceria com
membros da comunidade alemã da cidade – porque contemplava outros esportes,
praticados nos clubes germânicos, e que seu sumiço talvez faça parte da
perseguição a essa etnia na cidade, a partir de 1941.
aos jornais, o que fazia com que copiasse notícias, à mão, em cadernos que
guardou, evidente. Não houve um dia, desde aqueles da puberdade, em que não
tenha somado ainda que um mísero item à coleção. Paralelo aos manuscritos,
começou a mapear as partidas de futebol, listando, em cartazes, os melhores
lances, faltas, quem jogava em qual posição e de que chuteiras pesadas tinham
saído o gol. Aproveitava para registrar – na caneta – o desenho do emblema do
time, das camisetas e os demais objetos de desejo dos boleiros. Ah, copiava o
hino.
O futebol que Levi cultivou no seu porão não é o do espetáculo, mas o de milhares de anônimos que entraram em campo, em times minúsculos
apenas pelos grandes times da capital. Com assessorias grandes e torcedores interessados,
os clubes de porte têm tutano para documentar suas histórias. Para esses, a
preciosa coleção de Levi pode não fazer diferença. A questão é que ele dedicou
a mesma atenção a times que hoje não mais existem ou que foram fundidos – o
Primavera e o Britânia, por exemplo. E, tchan-tchan – dedicou seu método de
arquivista diletante à infinidade de times étnicos, de bairro, suburbanos e
agremiações que nem imaginamos existir. Em duas ocasiões recorri a Levi para
saber desses clubes. Uma para uma reportagem sobre o extinto “5 de Maio”, aqui
na velha Água Verde; e outro sobre o “Bacacheri F.C.”, no momento em que a sede
do time foi vendida a uma rede de supermercados, numa rocambolesca negociação.
rios. Certa feita, Mulford abriu arquivos em que estavam cartas que recebeu de
jogadores, ao longo de suas seis décadas de lida. Eram enviadas em
agradecimento ao colunista esportivo, pelas notícias dadas. Em meio ao
salamaleques de praxe, os missivistas aproveitavam para falar da família, da
saúde, da falta de grana, das incertezas da profissão. Esse material é pasto
para os pesquisadores, tamanha sua riqueza. Dariam um livro? Sim, um lindo
livro.
violência pedir a Levi Mulford interpretações dos fatos esportivos. Talvez o
fizesse na esfera privada, com a mulher Edite Lúcia, também colecionista, ou com os três filhos.
Conversamos, por exemplo, sobre o livro Como
o futebol explica o mundo, do norte-americano Franklin Foer, mas ele não
escondeu se sentir pouco à vontade em falar do que o futebol significava para
as sociedades polonesas ou italianas da capital. Foer afirma que, em grupos
desse naipe, ter um time de futebol representava “gritar” que aquela comunidade
não trabalha mais na enxada, que “melhorou de vida”, pois o futebol é inglês,
logo nobre, e jogado com os pés, não com as mãos. Mas necas – o papel de Levi
era garantir que toda e qualquer notícia sobre o Trieste F.C., de Santa
Felicidade, não lhe escapasse. O mesmo valia para Iguaçu, Urano, Vila
Fanny, Bola de Ouro, Belmonte... O
resto, não lhe pedissem.
ao trocadilho. Mas um colecionador, jamais. Ele levanta com uma tarefa para
cumprir e não pode vacilar. Pessoas assim levam vidas em segredo – suspeito que
um anjo cochichou no ouvido de Levi que tinha nascido para guardar. Não
discutiu com o destino. Fez bem. O futebol que cultivou no seu porão não é o do
espetáculo, mas o de milhares de anônimos que entraram em campo, em times
minúsculos, e viveram ali, por uma hora e meia, o domingo da vida.