A veterana Liamir Hauer está em festa. Dia 9 de fevereiro último, comemorou a cifra de 100 anos, cravados. É nascida em 1923 – e se pode dizer a data sem pudores, pois ela mesma, a aniversariante, faz as contas repetidas vezes. “Leilah, quantos anos eu completei mesmo?”. Leilah Santiago Bufrem – conhecida intelectual paranaense, editora, professora aposentada da UFPR e, antes de tudo, filha de Liamir, repete com boca cheia o número de três dígitos, inalcançável para a maioria dos mortais. A mãe faz cara de espanto quanto ouve a resposta e replica a informação, alguns decibéis acima. É festa.
A casa das duas anda cheia de gente, antes, durante e depois do centenário... Liamir dispensa rapapés e recebe visitas a qualquer hora. Muitos querem abraçá-la, fazer a pergunta manjada – “que água você bebe?” – ao que responderá “uísque”, o que não é mentira. Depois, resta aos convivas e penetras se acabarem de rir com uma das figuras mais incríveis já paridas nos pinheirais. Nada rouba o humor da “mulher araucária”, título conferido pelos amigos. E se não houver algo de espirituoso a dizer, a senhora Hauer dançará pela sala, quase sempre de salto alto, para desassossego de Leilah e das cuidadoras Jéssica e Janete. A personagem Úrsula de García Márquez ficaria no chinelo.
No dia da visita para este texto, Liamir vestia uma chanfrada calça boca-de-sino, à moda anos 70; camisa estampada, bijuterias new hippie. No cocuruto, um sexy rabicó amarrado às pressas. E, não contem a ninguém, calçava horrendos chinelos croc. Nela ficam bem. Bufrem conta que para os festejos de aniversário – no Centro Feminino de Cultura, mês passado – a mãe escolheu um vestido vermelho, do estilista Clóvis Volpato, “por ter tudo a ver com ela”. Na ocasião, fez backing vocal para músicos do Clube de Engenharia, do qual é uma espécie de sócia honorária. Ao microfone, cantou alguns dos hits de sua vida – “Ó, abre alas”, de Chiquinha Gonzaga; e “O Ébrio”, de Vicente Celestino. Caso a encontrem por aí, é só dar o tom – ela faz o resto.
Em um século, ninguém descobriu em que botão desligar Liamir. Melhor assim. Não precisou de Ritalina nem de diagnósticos severos de hiperatividade, ainda que tenha de fato preocupado os pais, os professores Dario e Pompília dos Santos – ela poeta cultuada da primeira metade do século passado. Radicado em Paranaguá, o casal deve ter se perguntando porque diabos a filha resistia em ser uma moça de fino trato. Diz-se que voltava da escola se pendurando de árvore em árvore – uma espécie de Juma Marruá do litoral, com pernas e braços lanhados. “Minha infância foi boa”, repete, ao iniciar um de seus roteiros preferidos de conversa.
Diz-se que tinha 15 anos quando o diretor da escola, Ernani Santiago, a pediu em casamento – “livrando-se da pior aluna do ginásio”, como ela gosta de debochar. Ao contrário do que se acreditava, o matrimônio não curou a guria que amava a vida “em febres”. Liamir, a propósito, casou-se três vezes, mantendo-se, invicta, uma chaleira de água fervendo. Para despeito de muitas de suas contemporâneas, encaixou-se num daqueles casos raros de quem pouco se importa com a opinião alheia. Amou, viajou, curtiu a glória e as vacas magras. Foi do Country Club ao Maneko’s bar da Praça Osório, com preferência pelo segundo.
“Se eu entrasse num cemitério, diziam que eu estava de caso com o coveiro”, gostava de repetir, aos risos, sobre a reputação talhada na maledicência. Em resposta aos incomodados, quando beirava os 80 anos, antes que o The End a pegasse, recolheu-se e desatou escrever livros sobre o que assistiu no cercadinho da alta sociedade, seu berço. Publicou um texto de memórias atrás do outro: O circo, O circo pegou fogo, Rescaldo e Pra lá de Marrakech. Comportou-se em todos os casos como uma mulher educada – não citou nomes, só os pecados, inclusive os que dormiam nos confessionários da Igreja da Ordem. Tirou o sono de muita gente. E arrancou afetos de outra parte, essa, muito maior. Foi como se de repente Curitiba tivesse encontrado a sua própria Dercy Gonçalves – irreverente, desbocada, incansável. E melhor – ligada 100% no modo “recreio”. Ela continua sendo a colega mais divertida do pátio do colégio, aquela que nos convida, ao pé do ouvido, a voltar para casa subindo em árvores.