José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Márcio Marins: justiça seja feita

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
03/05/2020 19:00
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“Ele era meu malvado favorito”, brinca – seguida de
pranto – a historiadora Marise Felix, 64 anos, ao falar da morte do ativista
Márcio Marins, 48 anos, na madrugada do dia 24 de abril, no Hospital de
Clínicas, em Curitiba. Marins, como era conhecido no movimento social, estava
internado desde o fim de janeiro, em decorrência de uma anemia profunda e
insuficiência renal. Os mais próximos sabiam da gravidade do seu estado. Mas
ninguém acreditava que beijaria a lona. Era MM, afinal. Enquanto pôde, da cama
mesmo, fez projetos, protestou, deu ordens e – sobretudo – acreditou.
Sua passagem para outro andar mexeu com a cidade –
mesmo com a cidade em modo pandemia. Em se tratando do homenageado, não causa
espanto. Pipocaram depoimentos emocionados nas redes. O distanciamento social
imposto pela Covid-19 impediu o grande cortejo que, por certo, o sepultamento ocasionaria.
Mas as exéquias foram longas no Facebook e Instagram, nas quais amigos e
admiradores fizeram de tudo para driblar, com perdão ao clichê, essa ironia do
destino: a solidão final de um sujeito que se especializou em promover
encontros. Briguento, ranzinza e reclamão, Marins, à revelia da contradição,
passou pela vida como um agregador.
“Seu maior legado? Ah, o Marins apostou nas pessoas. Que elas podiam falar por si mesmas. De agora em diante, acho que me lembrarei dele todas as vezes que encontrar um negro, uma mulher, um gay, um morador de rua usando a própria voz”, testemunha o agente de turismo Everton Cristian Paiva, 42 anos, o Thon Cris, um dos muitos membros da comunidade que Márcio formou. “Antes dele, eu estava dentro do armário”, avisa Thon. A lista de arrastados portas à fora, da sexualidade e do comodismo, é longa e tão biodiversa quanto uma floresta tropical. Não houve ferida que esse carioca do subúrbio de Bangu não tenha tocado, nem tipo humano do qual não tenha se aproximado. Era uma escola de samba inteira na avenida – e não se trata apenas de uma figura de linguagem.
Não houve ferida que esse carioca do subúrbio de Bangu não tenha tocado, nem tipo humano do qual não tenha se aproximado
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Antes de desembarcar em Curitiba, no início dos anos
2000, Márcio Marins foi um daqueles jovens que se infiltravam nos barracões de
escolas de samba – para aprender tudo, e virar quem sabe um Mílton Cunha (de
quem chegou a se aproximar, inclusive). Era portelense de coração, mas
participou de carnavais de outras agremiações, como a tradicional Império
Serrano. Pelo carnaval, deu as costas à formação de fisioterapeuta e abraçou a
de desenhista – fez uma pá de cursos que lhe talharam para projetar e costurar
fantasias. Gostava tanto do ofício que nem a propalada frieza do carnaval
curitibano o assustou.
“Ele nunca reclamou da cidade”, confidencia o administrador de empresas e ativista paranaense Igo Martini, 50 anos, companheiro de Márcio Marins por pouco mais de 15 anos. Conheceram-se num encontro de luta pelos direitos LGBTIs, no Rio de Janeiro, e foi de uma vez por todas. Àquela altura, Marins estava encrencado na Cidade Maravilhosa, ameaçado de morte por esquadrões da Baixada Fluminense, incomodados com suas denúncias sobre assassinato de travestis. Pavio curto e pouco dado a dobrar a língua, atraiu uma legião de demônios aos seus calcanhares. No mais, Igo – hoje oficial da ONU em Roraima e trabalhando com refugiados – era um bom motivo para Marins mudar de endereço.
Sem exageros, Curitiba não seria mais a mesma depois que o forasteiro apaixonado aportou. Basta lembrar que nem bem tinha chegado, denunciou, em parceria com Igo, os motes homofóbicos dos skinheads expressos no “mate um gay por dia”. Certa madrugada, o casal se viu agredido, sem dó. Os dois puseram a boca no trombone. MM tinha sangue nos olhos quando tropeçava em alguma injustiça. “Virava um leão”, resume Marise. Trilha sonora de sua fúria? Maria Bethânia.
Foram tantas as lutas que abraçou que ninguém ousa
numerá-las. Basta dizer que chegou a precisar de proteção de um programa de
amparo a testemunhas: sua atuação como conselheiro de direitos humanos
ultrapassou o papel meramente decorativo. O cara que chegou a ter uma vaca de
estimação, no quintal de casa, no Rio de Janeiro, gostava de atitudes radicais
e de temperos fortes. No comando da cozinha, inclusive. Cozinhava com luxúria.
Do nada fazia um banquete.
***
Protocolarmente falando, Márcio Marins foi um
militante afro, LGBT e pela tolerância religiosa. Fundou a ONG Dom da Terra,
que se propõe fazer a difícil conciliação entre o movimento negro e os gays; e
braço forte da Associação Paranaense da Parada da Diversidade, a Appap, a cuja
trajetória estava ligado pelo umbigo. Não se fala do evento sem passar por MM. Paralelo,
atuou na Escola de Samba Acadêmicos da Realeza, na capital, e na Filhos da
Capela, em Antonina. Como, na prática, não podia ver ninguém na pior, essas
atividades se multiplicavam por dez, rumo ao infinito e ao caos.
Os episódios que envolvem a compaixão ilimitada de Márcio beiram a lenda. Até no futebol: vascaíno no Rio, aqui torcia para o Paraná Clube, “um time de verdade”. Se encontrava um sem-teto, não sossegava até lhe achar um abrigo. Certa vez, foi recebido com tiros, na Praça Tiradentes, ao enfrentar ladrões de bolsa de uma velhinha. “Pô, podia ser minha mãe”, respondeu aos que lhe criticaram pela maluquice. Cortava-lhe o peito saber que um jovem tinha sido expulso de casa pelos pais, assim que sabiam da orientação sexual. Dá-lhe se virar do avesso. Histórias de abandono como essa lhe chegavam às pencas ao complexo de ONGs que formam o Grupo Dignidade – criado por seu amigo Toni Reis –, com sede na Praça Carlos Gomes.
Os episódios que envolvem a compaixão ilimitada de Márcio beiram a lenda
A urgência de Marins em reparar as sacanagens do
mundo – claro – afetavam com murros sua vida prática e sua saúde. Era um duro.
Pior que isso, sabia que muitos não o engoliam. “Tinha dificuldades em se
organizar para as contas do fim do mês”, lembra Igo. “E problemas em dormir...”.
Conhecido pela generosidade sem limite, recebia no colo tudo que é problema
alheio. E que não lhe dissessem não ser da sua conta – fosse assim, não teria
aconselhado a haitiana Laurette Bernardin a fundar uma associação de apoio a
sua gente, para citar um exemplo. Eu mesmo, como repórter, nunca cruzei com ele
no Centro, o que era comum, sem voltar para a redação com um relato sobre
alguém que estava sendo lesado. Era incansável – mandava documentos, gravações,
não se entregava. Noites em claro – costurando fantasias ou descascando pepinos
– eram sua rotina.
A multiplicidade de causas abraçadas por Márcio
Marins, inclusive, gera uma situação engraçada: há uma disputa dos amigos em
afirmar o que ele mais amava. Thon Cris, hoje à frente da Appad, lembra de
pronto a comoção que lhe causava o povo da rua. Marise Felix – presidente do
grupo Mães pela Diversidade – não pestaneja: “Márcio amava as travestis e
transexuais”. Não só era hábil em reuni-las, para que produzissem sua cartilha
de direitos humanos, como fez delas suas principais estrelas da avenida. A hoje
presidente do Fórum Paranaense de Travestis e Transexuais (FPTrans), Sabrina Mab,
31 anos, descreve a rouba de brocados que lhe confeccionou para que fosse
destaque na Unidos da Capela. A vida dela se divide em antes e depois de MM. “Ele
me ensinou a não ficar esperando que ninguém me defendesse. Mandou que eu fosse
à luta”, conta a hoje militante da causa trans.
Quando o conheceu, Sabrina era pouco mais de uma menina e, como se dizia, não estava nem aí para a Hora do Brasil. Não passou impune pela navalha do militante que adorava trajar branco, chapéu Panamá, e falar muito sobre crenças. Nas crenças, aliás, resiste um outro Márcio inesquecível. No candomblé, sua religião, era filho de Obaluiaê com Oxóssi. Acrescentou “Jagum” ao próprio nome. A propósito, se tinha algo que o colocava nos cascos era preconceito religioso. Rodava uma ala de baianas inteira. Ia para as cabeças – e ai de quem lhe atravessasse o samba.
O conterrâneo carioca José Jorge da Costa Gomes, 47
anos, o babalorixá Jorge Kibanazambi, conheceu Márcio assim que chegou a Curitiba,
há quase 20 nos. “Não me senti tão sozinho na cidade”, conta o líder que atua
em Colombo, na Região Metropolitana. Tiveram afinidade instantânea. “Quando
íamos a um evento, ele me acordava bem cedinho – batia na porta e dizia ‘babá,
babá, vamos’. Sempre tinha algo urgente a resolver.” Muitas vezes, ajustava no
dia mesmo – algumas no grito, outras na diplomacia. Luz e sombra – essa
bipolaridade não diagnosticada era um encanto.
Certa vez, o terreiro de pai Jorge organizou uma
carreata em honra de... São Jorge, pelas ruas de Colombo. Mas em cima da hora
as autoridades proibiram que a manifestação passasse pela Estrada da Ribeira –
alegando que atrapalharia o trânsito. O pai de santo se conformou. Márcio, “mas
nem pensar. Vai sair, sim”. Passou a mão na agenda de telefones, ligou para
advogados, juízes, promotores até conseguir a liberação. Era seu estilo: um
perigo quando deixava cair a gota d’água. Um prodígio quando demonstrava que
podia ter cursado o Instituto Rio Branco. Culto, articulado e dado a mergulhos
radicais em temas que lhe interessavam, conseguia sustentar conversas com quem
quer que fosse. E adorava ganhar as pelejas.
“Carros da Polícia Rodoviária Federal cuidaram da
nossa carreata. Acredita? Ele conseguiu. Aprendi com ele a não desistir”,
lembra pai Jorge, ao repetir uma frase comum a todos os amigos de Márcio
Marins. A maior parte deles sente dificuldade em resumir o que o movia.
“Paixão” é a palavra mais repetida. “Senso de justiça aguçado” é expressão
corrente. “Pressa”, outra. A morte prematura de Marins joga as apostas na
última hipótese. Ele tinha urgência. Como tantos outros semideuses, parecia
saber que o trajeto seria breve, que o tempo poderia lhe pregar uma peça. Sua
intuição estava certa.

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