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José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

O admirável mundo de Melo

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
05/05/2023 14:40
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Soube da morte do comerciante José Avelar de Melo, aos 85 anos. Aconteceu em 19 de março, dia de São José, seu santo padroeiro, mas tenho poucas informações sobre as rotinas religiosas do nosso personagem. Melo – para os que tiveram a sorte de conhecê-lo – preferia comentar suas devoções mundanas, como as que mereceram as capas da extinta revista Playboy. Graças a sua piedade, locomotivas como a Tiazinha e a Feiticeira ganharam o melhor lugar nas estantes da “Banca do Nanicão” – lojinha que ele manteve por 35 anos na Galeria Júlio Moreira, Centro de Curitiba, a partir de 1977.
Ainda que Melo fosse um homem pequeno – tinha 1,5 metro e, na medida em que envelhecia, mais parecia ao presidente Getúlio Vargas – ninguém o relacionava ao “nanicão” citado na fachada. Era a “Banca do Melo” e pronto, uma espécie de embaixada informal da cultura, com não mais de 30 metros quadrados – plantada no lugar apelidado de “túnel da catedral”. De tão pequena e abarrotada, era preciso pedir “com licença” umas cinco vezes, até chegar ao caixa. O barato é que mesmo sendo um ovo, o local se consagrou como a banquinha mais bonita da cidade.
Motivos, a rodo. Para além das beldades estampadas nas “revistas masculinas”, hoje um assunto que ataca os nervos, Melo se revelou um aguerrido defensor da imprensa alternativa. Em tempos de chumbo grosso, o que ele fazia era brincar com fogo. Vendia às claras jornais como Opinião e Movimento, mesmo sabendo que a Polícia Federal podia dar uma batida no estabelecimento. Pior – corria o risco de mexer com os humores do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, trupe de pirados que brincava de explodir bancas. A organização fez longa carreira nos subterrâneos de Curitiba, “a estranha”.
Quando a ditadura agonizou, em 1985, José Avelar, o Melo, já estava consagrado como um bastião da resistência, mesmo sem ser um aficionado em política. Houve quem o convidasse para congressos de teor revolucionário, ao que agradecia: o que lhe encantava mesmo era a convivência com fregueses ilustrados. Citava-os como a uma confraria de chapas – a exemplo do arquiteto Key Imaguire Júnior, devorador de HQs; o escritor e cineasta Valêncio; o cineasta Nivaldo Lopes, o Palito; o historiador Vidal Costa e, é luxo só, o urbanista Jaime Lerner – um dos famosos a baterem ponto na banquinha.
Além da audiência seleta, a boa localização, “perto de tudo”, fazia do endereço um palco de episódios divertidos, envolvendo leitores, anônimos ou não, que se acotovelavam entre pencas de palavras cruzadas e revistas da Editora Abril. Melo contava essas passagens com caretas deliciosas, sua especialidade: “Quando batia meus olhos no dela, percebi na hora. Imagine quem era? A Bruna Lombardi. A atriz sussurrou – ‘não es-pa-lha’”. Ao que obedeceu caninamente.
Esses e outros causos que tirava do bolso o fizeram esquecer a vida que tinha antes – a de tratorista e caminhoneiro. José Avelar de Melo era sergipano de nascimento, um sertanejo que só faltava nos contar que cruzou com o bando de Lampião. Suas viagens na boleia pautariam uma reedição do seriado Carga pesada. Foi assim até o dia que conheceu a alagoana Lúcia, com quem casou, teve três filhos e se estabeleceu nos verdes da curitibaníssima Vila Tingui. A banca veio no pacote, primeiro como ganha-pão, depois como passaporte para uma felicidade que ele nem imaginava existir.
Atrás do balcão, Melo perdeu a paisagem das muitas BRs por onde andou – a “Júlio Moreira” não é, afinal, uma das Lafayette de Paris. Mas desfrutou da inteligência da clientela e das reportagens que devorava. Fez-se um leitor faminto. Virou referência. E dava uma curiosidade danada saber quem era sua fiel clientela de fiados – cujos nomes registrava em fichas, guardadas numa vetusta caixinha de metal.
É evidente – Melo não era o único dono da banca estimado salve-salve. Some-se Gregório de Bem, da Praça Tiradentes e da Rua Itupava; o Alex da Banca Bom Jesus, no Cabral; o Dorival Carneiro, da Praça Carlos Gomes e o lendário Ingomar Heindorn, da Pracinha do Batel. Mas, admitamos, nosso jornaleiro preferido se mostrava um menestrel. Parecia sempre um caminhoneiro voltando de viagem, cheio de novidades trazidas de um magnífico local por onde andou – a banquinha de jornais e revistas.