Opinião

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

O futuro do passado

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
23/05/2023 10:00
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Afirmativa 1: a pandemia fez um BEM danado para a memória. Afirmativa 2: a pandemia fez um Mal danado para a memória. Em tempos bipolares, as duas frases fazem o maior sentido; e se prestam a toda sorte de confusão – inclusive para quem ganhou aquele abraço do corona e se viu, de súbito, mais esquecido do que a média. Meu caso.
Mas alto lá, não se trata da capacidade de lembrar o que comeu no almoço ou não; ou do maldito nome do vizinho do 409. O que está em jogo é o que vale a pena ser lembrado depois que a Terra parou e 15 milhões se foram pra Shangri-lá, num estalo de dedos.
Permitam-me cutucar mais um pouquinho. Os estudos de memória são – digamos – um patrimônio iniciado com a Filosofia Antiga. Uma tormenta platônica, traduzida numa caverna cheia de sombras. Com essa metáfora, ganhou volume a suspeita de que possamos ter vivido em outros tempos, que volta e meia nos vêm à mente, prova de que algo em nós seria imortal e coisa e tal.
Daí em diante, a memória sempre regurgitou no decorrer da história, com maior ou menor intensidade, em especial na virada do século 19 para o 20, quando parte expressiva do que hoje sabemos sobre o assunto se consolidou. De Bergson a Freud, de Proust a Joyce. Pudera – o advento das grandes cidades trouxe a reboque a sensação de que os ponteiros do relógio se aceleraram. Onde havia cheiro de bosta de cavalo passou a ter cheiro de fumaça. E quanto mais rápido o mundo deu de se movimentar, maior a tecnologia e maior o esquecimento, pois não há disco rígido que dê conta de tanta notícia.
No meio dessa engrenagem em que tudo se escreve e se apaga feito doido varrido, a memória ganhou ares de ciência e de civilidade – um dispositivo para que erros não fossem repetidos, dentre outros clichês românticos. Pairam, é verdade, desconfianças brutais em relação às lembranças. Nunca são inocentes, espontâneas ou fidedignas – e há mesmo um consenso de que o passado só se atualiza à custa de distorções. Desculpe aí – sua avó não era tão bonita nem os filhos lhe pediam a bênção antes de dormir, como se o passado fosse uma novela do Benedito Ruy Barbosa.
A memória, em resumo, não é confiável, mas funciona qual um parente de caráter duvidoso, do qual não temos como nos livrar na noite de Natal. Ou pelo menos era assim até o início de 2020 – quando todo mundo sabe o que aconteceu. A covid-19 não criou uma erosão apenas na economia, na educação ou na política. Gerou também uma cratera na nossa percepção do que deve ou não ser lembrado depois da ressaca monumental trazida pela pandemia.
Parece contraditório – em tese, mais do que nunca sobram motivos para cirandar numa das maiores especialidades da memória: provocar a ilusão de que, “era uma vez”, houve um mundo muito melhor do que esse que está aí, debaixo de nossas narinas. Por esse raciocínio, o passado estava “com tudo” para voltar à moda. Em alguns grupos virtuais frequentados por saudosistas, isso é até uma realidade. Mas não uma regra.
Na vida como ela é, paira uma preguiça em falar sobre o ontem, talvez porque sejam urgentes as demandas para o hoje e o amanhã, em meio ao pós-tudo. Dá até um medinho do destino nada promissor que espera nosso patrimônio cultural e histórico. A expressão tão cultuada pelos mais moços – “que coisa mais hoje de manhã” – corre o risco de virar uma política de Estado, um modelo educacional ou um plano econômico.
Exagero? Pois repare, nas miudezas, como o passado mais e mais se parece a uma nau que se desgovernou no oceano, sem chances de ser resgatada. Tomara eu esteja redondamente errado, como se dizia. Mas, por ora, esquecer parece ter virado um método, capaz de exorcizar o passado, esse lugar sombrio onde moram as causas da violência, da aids, da desigualdade e de uma série de informações sem serventia.
Como escreveu lindamente o intelectual Teixeira Coelho, morto em 2022, no ensaio Com o cérebro na mão – o qual recomendo – pela primeira vez na história da humanidade impera a recusa de considerar que algo nos antecedeu. Mais do que estranho, é triste. Não se perde um sentido sem dor – e lembrar é como tocar, provar do gosto, enxergar, cheirar, ouvir, ainda que trajando óculos escuros.