Opinião

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

O livro das vidas de Eurípides Ferreira

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
01/12/2021 20:08
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O hematologista Eurípides Ferreira, 81 anos, escreve suas memórias. Ambos passam bem, eis a notícia. O livro, ainda que em gestação, já passou pela pia batismal. Chama-se Pelos caminhos da minha vida. Mas o escriba avisa que não tem pressa em concluí-lo. Não empurrem. Quem o conhece, sabe – ele é dado a negociações com relógios, ampulhetas e o que mais sirva para contar o tempo. A morte? Adiou para depois dos 90 anos e não se fala mais nisso. Mesmo assim, precisa aplacar o ânimo dos amigos e conhecidos que lhe torram a paciência, ansiosos para ler no atacado as historietas que o médico costuma contar no varejo.
Narrar “causos” é de fato um de seus talentos, mas não o primeiro que alguém imagina ao ler o currículo de Eurípides. O profissional de saúde e pesquisador realizou tudo, ou, vá lá, quase tudo que alguém do seu meio poderia sonhar. Esteve em instituições interna­cionais, com passagens por lugares como Módena e Torino, na Itália, e na Carolina do Norte (EUA). O maior dos prêmios é ter o nome inscrito no progresso do transplante de medula óssea, o que faz dele um cidadão ilustre, digno de ser recebido com uma banda de música e um discurso no coreto. Apenas no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, foram 16 anos. Calcula ter feito uma centena de transplantes, ligado ao Hospital de Clínicas e ao Hospital Pequeno Príncipe – instituição com a qual festeja 60 anos de parceria em 2022. Tudo o mais de seu extenso currículo vai para a casa das dezenas. A trajetória do doutor Ferreira é superlativa. Sua humanidade também – e é dela que emerge o fino contador de histórias.
Trata-se de um dom natural, percebido apenas por aqueles que superam a primeira impressão. Casmurro, sisudo, ensimesmado e irônico, Ferreira é do tipo que parece sempre testar a inteligência da plateia – seja um grupo de residentes, a família de um paciente ou um desconhecido que encontra pela primeira vez. É dado à sutileza dos alfinetes. Quem se permite rir de suas tiradas, ganha o passaporte para ouvir mais. Final feliz.
Não é difícil dissecar a origem dessa verve literária. A começar pela profissão: a galeria de médicos escritores é numerosa e, no Brasil, passa por Joaquim Manuel de Macedo, João Guimarães Rosa, Pedro Nava e Moacyr Scliar. Scliar, a propósito, arriscava dizer que a turma da medicina – quando se fiúza a escrever – o faz bem porque ouve todos os dias muitas histórias curiosas no consultório; e por ter de traduzir o complexo para o simples, na lida com os pacientes. A literatura, em tese, tende a florescer na soma desses dois ingredientes.
De fato, parte do que Eurípides conta – com entonação cênica e num roteiro irretocável – nasce de sua longa vivência nos consultórios. Parte. Há outras duas fontes a lhe abastecer o arsenal de crônicas: a religião e a família. Ambas colaboram para que suas narrativas extrapolem a frieza em branco e cinza dos hospitais. Levam-no a espaços sobrenaturais, aqueles que só a fé alcança, mas também à pequena Colina, cidade do Norte paulista onde nasceu. O município tem hoje 18 mil habitantes – uma multidão a comparar com os anos a perder de vista, quando lá circulava de calças curtas e suspensórios. Colina é a Macondo do doutor Eurípides. Ou, melhor, sua Sicupira.
“Meu pai era juiz de paz e dono da funerária local… Quem quase morreu de fome foi a família dele”, inicia, ao traduzir a pindaíba dos tempos de infância. Como na cidade da obra de Dias Gomes, pouca gente morria em Colina, um agravante para o reduto de 13 irmãos, a maioria agregados – como se dizia – sobre as crianças órfãos e abandonadas que os Ferreira insistiam em colocar do portão para dentro. Com a funerária sem dar lucro, todo mundo tinha de se virar do avesso para dar conta das refeições e dos sapatos. Engraxando-os, inclusive, como fez Eurípides em mais de uma circunstância da vida, na porta de bares e de igrejas.
A arte das graxas e das escovas, é bom que se diga, não o resumem. Se me permitem, as durezas de Colina e, depois, as de Curitiba, para onde se mudou ainda guri, na década de 1950, fizeram de Eurípides, sobretudo, um soberbo negociante. Adolescente, vendia doces na sala escura do Cine Ópera, enquanto na tela passava Ben-Hur ou Quo vadis. Na mocidade, foram pródigas suas passagens pelo comércio, em funções administrativas ou não, na quais desenvolveu as artimanhas da troca e do gogó. Com folga, algumas de suas melhores aventuras se deram atrás do balcão, ou na mesa de um escritório – saberes que o ajudaram, tempos depois, na Medicina. Chegou a conseguir de graça laboratórios inteiros, que muito ajudaram no avanço dos transplantes do Hospital de Clínicas da UFPR.
É hilário ouvi-lo lembrar da dureza que era fazer descer dos sótãos de lojas de calçados, da Praça Generoso Marques, 30-40 pares – sem que as senhoras levassem algum. Ou passar dias abrindo metros e metros de peças de tecido. Nesses magazines onde se empregou, como a Casa Bandeirantes, suponho, aprendeu a cortar. Encontrou no batente tipo cruéis – patrões e patroas vilões, hábeis em pisar no calo do menino magricelo que roçava túmulos em Colina no Dia de Finados. Mas também benfeitores – que lhe deram gorjetas gordas e estímulos para que virasse a mesa. Um desses anjos, cujo nome pede sigilo, encontrou décadas depois, no hospital, perto da morte. “Quando nos reconhecemos, choramos juntos…”.
Para “além” dos divertidos ensinamentos das corporações estão as andanças de Ferreira pelo espiritismo. São de berço, o que torna tudo mais interessante. O futuro doutor nasceu num tempo de maus bofes do catolicismo com os seguidores de Allan Kardec, o que lhe reservou o lugar privilegiado de observador à margem da vida. É desse ponto de vista que enxerga o mundo e suas gentes. Seu nome pomposo e musical, aliás, não é uma homenagem ao poeta trágico – um radiologista da alma – nascido no século 5 antes de Cristo, mas ao célebre médium Eurípides Barsanulfo (1880-1918), que viveu e atuou em Sacramento, Minas Gerais, pertinho de Colina. Inspirou-o? Inspirou.
Pois o Eurípides de Colina fez a lição de casa. Entendeu bem cedo o sentido da caridade, ao crescer numa família estendida, por força do amor ao próximo. Quando chegou a Curitiba, a fria, atraído pelo irmão, Altivo Ferreira, que aqui cursava Medicina, já era um sujeito atento aos sinais celestiais, digamos. “Acho que vou voltar [reencarnar] 5 mil vezes”, brinca. A escolha pela profissão – desejo secreto do menino engraxate e do jovem que sabia negociar – veio na esteira do desejo de, simples assim, ajudar as pessoas. Mesmo quando não podia estar lá, ao lado do leito de um agonizante, se me entendem. Pelo menos em dois relatos, Eurípides se duplica, sendo visto aqui e ali ao mesmo tempo, na lida com pacientes. É de dar frios na espinha. Ninguém conta melhor do que ele esses capítulos de realismo fantástico que devem figurar em Pelos caminhos da minha vida. Em tais episódios, a picardia – uma de suas marcas – dá lugar a uma gravidade mística, estilo que lhe cai tão bem quanto o humor.
Tais passagens, claro, têm como cenários ambulatórios, prontos-socorros, UTIs, consultórios, nos quais o pesquisador tarimbado se viu, não poucas vezes, de frente para o mistério. Há momentos tragicômicos, como o do paciente que jurava ter retirado o apêndice. Tinha até a cicatriz. Só que a cirurgia foi obra de um médico picareta dos sertões do Paraná. Imaginem a negociação (risos). Ou a do dia em que, desafiado por um arrogante colega de ofício, Eurípides fez ver o que parecia um dificílimo caso para a medicina não passava de uma semente de laranja instalada no pulmão do doente. “Corpo estranho”, decretou, para um incrédulo comitê de cirurgiões coroados. Tiveram de baixar a crista. Ao lembrar, ri de canto de boca, como só aqueles que sabem da vida podem fazer.

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