Durante a ditadura militar de 1964, o jornalista Nelson Padrella se defendia do autoritarismo com uma das armas mais letais que tinha à mão: o desenho. Foram incontáveis bicos de pena, traços a caneta, rabiscos a lápis, o diabo, feitos sem preguiça e com a urgência que o momento pedia. Eram distribuídos a quem interessasse, sem que se pedisse algo em troca. No geral, os interessados naquela Curitiba de 440 mil habitantes, míseras 10 mil contas telefônicas, 60 linhas de transporte coletivo e frio de lascar eram universitários dispostos a restituir a democracia – nem que fosse na base dos estilingues. Também recorriam a palavras de ordem, berradas nas escadarias da UFPR ou publicadas em jornais clandestinos, nos quais a obra de Padrella era recebida com hipi-hipi-hurra.
Se bem lembra, apenas uma única vez a Polícia Federal o chamou às falas. Comportou-se mais ou menos bem, como é de seu estilo sardônico. Ao ser indagado se era ele o autor dos desenhos publica- dos nos panfletos dos diretórios acadêmicos, olhou bem para a prova de crime e disse com cara de bom moço de Palmeira: “Não, senhor. Eu não desenharia tão bem assim”. Arrancou risos da autoridade e foi despachado, são e salvo, pelo menos até 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 mordeu, sem assoprar, sua pródiga carreira de periodista.
Em tempo, o mundo de NP não caiu: marcado pelo sistema, passou a atuar na irreverente Grafipar Edições – especializada em HQs e revistas ditas pornôs, vendidas com cagaço pelos donos das banquinhas do Centro. A editora era reduto da turma do “desbunde”, um pessoal sem muitos modos, que exorcizava a direita, mas achava a esquerda careta em termos de costumes. Na Grafipar, além de desenhar e roteirizar quadrinhos, Padrella editou magazines de bolso, como a Peteca e a Rose – hoje um manjar dos céus na boca dos pesquisadores ocupa- dos de mostrar que a resistência à ditadura teve muitas cores.
Há poucos meses, num surto de desapego, Padrella, hoje com 86 anos impronunciáveis, doou cerca de 500 desenhos – em papel kraft, cartolina ou mesmo sulfite – para o acervo do Centro de Documentação LGBTI+ Prof. Dr. Luiz Mott, do Grupo Dignidade, cuja sede fica na Praça Carlos Gomes. Sim, são eles mesmo: sobras dos cartuns e charges que enchiam os olhos da estudantada que lutou contra o regime. O jornalista julgava que tinha dado asas a toda a safra. Só se deu conta da existência desse lote ao fazer sua mudança do Juvevê para o Centro Cívico.
Não causa espanto que essas imagens esquecidas de Nelson Padrella tenham encantado a turma do Grupo Dignidade – que as trata debaixo de luvas e respeito quase religioso, à revelia de serem escandalosamente pagãs. Os trabalhos, cheios de fúria e humor bandido, são feitos com traços ligeiros, sob medida para cenas dignas das pornochanchadas – gênero que logo iria se tornar uma coqueluche nacional. Encaixam-se na categoria arte obscena, ou erótica – gênero que ainda encontra resistência nos espaços de memória.
Eles tocam numa das proibições mais explícitas da máquina da censura – gozações envolvendo religiosos e membros das Forças Armadas. Hoje, soam inofensivas. À época, podiam acabar em pau-de-arara. Sessenta anos depois, além da qualidade técnica – NP é, afinal, um dos expoentes da geração 70 das artes –, a coleção recém-doada chama atenção pela expressão monstruosa com a qual desenhou bispos cheios de pompa e generais carregados de medalhas. “O que estávamos vivendo era um horror. Queria mostrar o ridículo daquela gente”, resume, ao ser indagado sobre o que o movia. Mostrou. O resto, agora, é história.