Ruy Castro – agora de fato e por direito um imortal da Academia Brasileira de Letras – diz que os jornais, quando morrem, não vão para o céu. Falta quem os chore. O escritor fez um pouco de drama, mas merece crédito: ele se refere ao finado Correio da Manhã, uma das vítimas da ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964, golpe sangrento que muitos pecadores preferem ignorar. Era um grande jornal. Chegou a ter entre seus revisores o mestre da prosa enxuta, Graciliano Ramos. E o renascentista Paulo Francis como editor de cultura. O Correio tinha berço – pertencia a uma família de imprensa, os Bittencourt. Era escolado – nasceu junto com o século 20 e foi assassinado a bomba, nos anos 1960, com requintes da covardia própria dos cidadãos armados. Deixou saudades até em quem não sentiu o cheiro de suas tintas.
As tramas que envolvem jornais desaparecidos – e talvez nunca chorados – acabou por me levar a uma espécie de pauta invisível, como se diz no jargão. Ei-la: a curtíssima existência do Panorama, periódico que circulou na cidade de Londrina, no Norte Novo do Paraná, entre 1975 e 1976. Não confundir com a revista homônima, com sede em Curitiba e que circulava na mesma época. Pois é. Fosse uma pessoa, o Panorama londrinense seria um daqueles homens ou mulheres de vida intensa e ligeira, parentes das estrelas. Não cabe numa definição. Não era jornalão, nem imprensa alternativa. Tinha persona própria. Mereceria o título de “Panorama, o breve”, para dar conta de suas mínimas 540 edições, sendo parte delas dignas de um capítulo na História do Jornalismo Brasileiro.
À revelia de seu brilho, contudo, são raros e esparsos os documentos sobre essa aventura editorial, descrita pelos que a conheceram como uma espécie de papado de sete dias. A ausência de fontes é curiosa, afinal, qualquer operário da imprensa que tenha pelo menos um chumaço de cabelos brancos sabe tagarelar sobre a existência do jornal Panorama – e adjetivá-lo sem pudores, como se falasse da própria mãe. Marcou uma geração, uma geração que mais fala do que escreve sobre a experiência. Imagino que assim o faça porque essa alegria lhe parece que foi ontem. Melhor contar. Dentre os entusiastas do assunto, ninguém supera o jornalista, músico e ativista Bernardo Pellegrini, com folga a caixa-preta dessa trama. Não está sozinho – o jornalista esportivo José Trajano, dono de todas as glórias que um repórter poderia sonhar, quase chora ao contar que trabalhou lá, quando moço. O escritor Nilson Monteiro nem tenta se conter – vai as lágrimas, em ritmo de Cataratas do Iguaçu, e leva a turma toda no rodo.
Aos fatos.
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Uma coleção completa e bem conservada do jornal Panorama descansava em paz no acervo privado do Grupo Paranaense de Comunicação, o GRPCom, em Curitiba. Graças aos deuses e deusas, em 2019 as encadernações foram emprestadas ao Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Paraná, no qual se iniciou uma pesquisa, capitaneada por estudantes. O grupo trabalhou pesado. Foram feitas 15 entrevistas em profundidade com jornalistas que bateram cartão na empresa. A empreitada rendeu meia dúzia artigos científicos, um site com reprodução das melhores reportagens, fotos, viagem a Londrina, evento, o diabo. Tomara a soma de tudo se consolide num livro coletivo – escrito com o frescor de nove futuros repórteres pesquisadores, autores dessa operação salvamento. Esses jovens, que se diga, tiraram a sorte grande: puderam folhear e ler as páginas do lindo Panorama. E conhecer parte das pessoas que integraram essa aventura, a exemplo da fotógrafa Elvira Alegre, tão jovem quanto eles nos tempos em que tudo aconteceu. Sabem coisa de filme? Foi o caso.
Elvira tinha 18 anos, estudava para o vestibular de Medicina quando – lá por outubro de 1974 – sua cidade do interior foi assaltada por uma trupe de jornalistas vindos de São Paulo e Rio de Janeiro. Traziam no currículo prêmios e passagens pela grande imprensa, mas, sobretudo, a glória de terem feito parte da revista Realidade, fenômeno editorial que marcou o Brasil do pós-golpe, da Tropicália, dos movimentos de 1968 e dos efeitos nefastos do AI-5. Em maior ou menor escala, claro, os recém-chegados estavam encrencados com a ditadura, por supuesto. Um lugar fora do raio imediato da repressão era tudo o que queriam, mas nada que fizesse deles pacatos cidadãos, entregues aos bocejos da sesta: os forasteiros chegaram naquele Norte para fundar um jornal – o melhor que pudessem – e procuravam uma rapaziada disposta a aprender o ofício. Acharam.
A guria de sobrenome sugestivo – Alegre – se alistou e nunca mais foi a mesma. O mesmo se diga de gente como o hoje advogado Tadeu Felismino ou Célia Regina de Souza, ou ainda Marcelo Oikawa, dentre outros nomes do movimento estudantil e da imprensa local – alguns oriundos do também extraordinário Novo Jornal. A lista total é um verdadeiro ranking dos mais-mais. O grupo assim, do nada, se viu ao redor de uma mesa, na sede do bairro Shangri-lá, aprendendo jornalismo de excelência com José Trajano, Mylton Severiano, Hamílton de Almeida Filho, Ricardo Gontijo, Narciso Kalili, Délio Cezar, Ruy Fernando Barbosa e, para encurtar, João Antônio, o criador do conto-reportagem.
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A engenharia que catapultou alguns dos melhores nomes da imprensa do país para a então distante Londrina da década de 1970 era cabulosa. O Brasil ocupava o posto de o segundo maior produtor de café do mundo; e Londrina, o polo econômico da maior região produtora do país. Muito, mas muito dinheiro rolava por aquelas divisas empoeiradas. Motivo mais do que o suficiente para que o empresário de comunicação e ex-governador do Paraná, Paulo Pimentel, planejasse erguer um jornal de primeira linha feito, desta vez, não no eixo Rio-São Paulo ou nas capitais, mas nos sertões do país. Era ali que morava o futuro. E havia, para ajudar, a “miragem democrática”, que prometia uma abertura política lenta e gradual, dando asas à imaginação: Londrina estava por um triz para ser o centro nervoso do país
A instalação dos jornalistas “de fora” na cidade tem um quê de Corrida Espacial. As descrições sobre os encontros para planejar como seria o melhor jornal do mundo são tão intensas que parecem ter ocorrido ontem à tarde. Para produzir os números de lançamento, a chegar nas bancas nos primeiros meses de 1975, grupos mistos – formados por veteranos e repórteres cheirando a leite – foram enviados para junto de bóias-frias, ou aos rincões do Nortão Paranaense. Outros fizeram pesquisa de campo – tática então incomum, de modo a responder “quem eram os londrinenses?”. João Antônio perfilou o dono do jornal concorrente, a Folha de Londrina, dando ao texto um título provocativo: “Desgracido!”, expressão usada aos borbotões pelo empresário de comunicação João Milanez. Por fim, a diagramação era arrojada, com espaços em branco, na cartilha dos míticos Última Hora e Jornal do Brasil, pioneiros nas artes gráficas aplicadas à imprensa.
A essa altura – diz-se entredentes – parte da provinciana Londrina estava ressabiada com o estranho modo de vida daquele grupo que parecia uma sucursal da comunidade hippie do guru Wilson Rio Apa, em Antonina. Não era bem o tipo de companhia que os pais queriam para suas filhas, e algumas já tinham se mudado para as casas dos jornalistas, dividindo com eles os lençóis. Verdade seja dita, o fim anunciado do Panorama não teve apenas conflitos comportamentais. As hipóteses são muitas. O primeiro número – formado por três cadernos especiais – talvez fosse paulistano ou carioca demais para uma cidade criada às pressas, por força da economia do café. A ironia, o humor, o estilo sofisticado impresso pelos ex-Revista Realidade talvez tenham mais afastado do que atraído leitores. Parte da elite da cidade não gostou – e com ela se foram os anunciantes. Uma retumbante briga entre os editores e os donos do capital se encarregou de apressar a viagem de volta de Severiano, Kalili e companhia. O sonho acabou.
A moçada que ficou, pelo visto, bem acreditou que daria conta de continuar, mas esses foi um daqueles casos em que os deuses saíram de férias. Em 18 de julho de 1975, a Geada Negra devassou os cafezais do Paraná, levando a economia do estado à falência. Mais alguns meses e seria a vez do Panorama baixar as portas e ganhar o terreno das lendas. Tinha então um ano e meio de vida, pouco, mas o bastante para nunca ser apagado. Sei não – nesse momento, num bar por aí, alguém conta para alguém que as máquinas do Panorama pararam, em 1976, mas não sem antes dizer a que vieram. Jornais de verdade, vivem e morrem assim.
Agradecimentos: a Milena Guilmo, Luísa Mainardes, Hiago Rizzi, Eduardo Magalhães, Giovana Frioli, Catarina Franceira, Paula Bulka e Thiago Fedacz, pelo mergulho na trajetória do “Breve jornal Panorama”.