escritor catarinense Marcelo Labes, 36 anos, inventou uma nova categoria
literária – o “livro vingança”. Tudo bem, não há nada de novo sob o céu. Deve
existir uma biblioteca entupida até a boca, só com obras feitas para “dar o
troco”. A dose de pimenta varia: vai da vingancinha do pipoqueiro à monumental
lavagem de roupa suja feita por Nina, a protagonista da novela Avenida Brasil. Uma das músicas mais
famosas do nosso cancioneiro, a propósito, se chama “Vingança”, de Lupicínio
Rodrigues e, em tempos da dor-de-cotovelo, era a trilha sonora dos suicidas. Em
miúdos, à revelia de sermos uma nação cristã, no lugar da outra face às vezes o
que oferecemos é um senhor diabo a quatro.
vem de um lugar chamado Progresso, por ironia, região que custou a conhecer o
asfalto, o coletivo, o poste de luz. “Somos uma família de alemães do fim do
mundo. Depois do nosso bairro tem as montanhas e mais nada”. A mãe era
doméstica, o pai operário. A vida, uma lenha. Nas pirambeiras da região, ser
branco, ter olhos claros e sobrenome alemão não é, a rigor, passaporte para o
Sul Maravilha. Alguém pode se chamar Labes e consumir a juventude na limpeza das
casas de família, arruinar a saúde numa tecelagem, repetir a sina do
alcoolismo, envelhecer num subemprego e – no caso do hoje escritor – estar
sujeito a abusos sexuais na infância. “Há o fascismo dos pobres”, repete. É do
que trata Três porcos, livro categoria
“escrita de si” – um transe entre o ficcional e o biográfico – cuja proeza é
ganhar a cumplicidade do leitor ao tratar de um assunto que provoca repulsa: a
pedofilia.
trauma de Marcelo menino estava encruado, num canto da alma. “Eu falava de tudo,
menos disso”. Até que contou o que lhe aconteceu, meio que ao acaso, numa
conversa por WhatsApp com a amiga poeta Amanda Vital, a quem dedica o trabalho.
Bateu barata-voa. Acabou na terapia, mas a psicóloga pouco interessada
respondia mensagens durante a consulta. Passou para a escrita – vertiginosa e
anacrônica, com surpresas em série, todas tiradas da vida como ela é. “Não
creio que dê para se curar escrevendo, mas se eu resolvesse tudo, os conflitos
não apareceriam e o livro não sairia. Precisava dele cru”.
um desses milagres da arte, permanecemos ao lado de Marcelo, ali rebatizado de
Rafael, um protagonista em carne viva, que salta no tempo, lambendo feridas.
Numa página brinca de jogar pedras num ônibus, noutra espanca um burguês num
mictório de supermercado, noutra sofre por ver a companheira descer a escada e
partir. Ele cumpre o que promete – uma experiência literária. Como o
autor/narrador ainda não se acertou com passado, nos livra de jogos ou
segredos. “Eu escrevo no calor da hora”, diz. É como se tivéssemos autorização
para deitar com ele no divã, lugar de onde assistimos impotentes aos episódios
trágicos que “roubam o homem que ele poderia ter sido”. De quebra, nos tornamos
solidários com sua vingança, acompanhando-o, mais de duas décadas depois dos
acontecimentos, para perto dos abusadores, passar tudo a limpo.
“Homens se reconhecem. Um homem forte reconhece outro homem forte como um oponente e já direciona suas armas contra ele. Os homens fracos nos reconhecemos de outra maneira: olhamo-nos com pena, e por mais que queiramos nos ajudar, nos sabemos fracos: isso limita qualquer tentativa de nos curar e nos proteger uns dos outros. Voltei ao escritório com pena de Bruno, que não deva ter dezoito anos e já estava perdido no mundo.” (p. 15)
“Ela me perguntou se eu queria de novo confundir as pessoas. Isso faz parte dessa literatura de que tu quer fazer parte, a nova literatura contemporânea brasileira? E antes que eu respondesse, emendou: Por acaso tu quer que as pessoas tenham pena de ti?, que que elas esqueçam que tu é um homem, branco, hétero e a coisa toda? Disse a ela que eu não era mais um escritor branco e privilegiado, porque afinal eu era pobre, sempre fui, não tinha como reacertar a vida porque estive sempre no lugar errado...” (p. 37)
“Valter participava dos meus dias. De início, pouco, porque eram encontros esporádicos os que tínhamos. Mas logo ele passou a almoçar às terças e quintas-feiras na casa da patroa da mãe. Eu saí da aula e caminhava umas quadras, subia um morro dolorido de tão íngreme, chegava para o almoço. Sentávamos à mesma mesa, a mãe e eu, que o resto da família. Valter sentava-se ao meu lado, contava histórias, fazia jogos de mágica com talheres. Tinha um lado menino nele que abraçava o menino que eu não queria deixar de ser, púbere, pré-adolescente, dor nos ossos e no coração.” (p. 82)