José Carlos Fernandes

Monique Ryba Portela

Precisamos falar de Marcelo Labes

Monique Ryba Portela
12/04/2021 14:28
O
escritor catarinense Marcelo Labes, 36 anos, inventou uma nova categoria
literária – o “livro vingança”. Tudo bem, não há nada de novo sob o céu. Deve
existir uma biblioteca entupida até a boca, só com obras feitas para “dar o
troco”. A dose de pimenta varia: vai da vingancinha do pipoqueiro à monumental
lavagem de roupa suja feita por Nina, a protagonista da novela Avenida Brasil. Uma das músicas mais
famosas do nosso cancioneiro, a propósito, se chama “Vingança”, de Lupicínio
Rodrigues e, em tempos da dor-de-cotovelo, era a trilha sonora dos suicidas. Em
miúdos, à revelia de sermos uma nação cristã, no lugar da outra face às vezes o
que oferecemos é um senhor diabo a quatro.
De modo que ainda que Labes não seja o primeiro, talvez seja o melhor nome da categoria lítero-passional “a vingança é um prato que se come frio”. Eu explico e você se segura na poltrona, combinado? Pense num cara f*. Nos dois sentidos. Na sua vida faltou grana, faltou tudo, só não faltou talento, ingrediente que, por ser cheio de caprichos, não paga as contas em dia. Se ele penou? Penou. Até lançar Enclave (ed. Patuá, 2018), obra de poesia que o empurrou para fora do circuito do Vale do Itajaí, seu endereço por uma encarnação inteira. Paralelo, corrigia teses e fazia as vezes de ghost writer. Foi quando decidiu escrever sua própria prosa. O que se deu, parece o quadro “Portas da Felicidade”.
Seu romance de estreia, Paraízo-Paraguay, é uma narrativa histórica, temperada por boa sociologia, sob medida para tratar de homens perdedores – tema que na voz de Labes desvia dos lugares comuns a respeito de masculinidade. O livro foi o segundo colocado no prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e primeiríssimo no prêmio São Paulo de Literatura 2020. Com o dinheiro, o autor conseguiu a chave da casa própria e parou de contar com a caridade alheia. Agora pode se dedicar a sua editora, a Caiaponte, assim chamada numa alusão divertida à Ponte Hercílio Luz, cartão-postal de Florianópolis, cidade que escolheu para chamar de sua. No mais, faz-lhe bem escrever sem medo que lhe cortem a eletricidade. “Enfim sós”, com a literatura.
Foi nesse clima de quase bonança que surgiu Três porcos, o “livro vingança”, ainda cheirando a tinta. O que Marcelo tramou ao longo de 192 páginas, não é para amadores. Como em Paraízo-Paraguay, a escrita nasce das montanhas, do calor de derreter catedrais e das águas impiedosas da cidade de Blumenau – também conhecida pelos sátiros de plantão como Neverland. Não é preciso ser muito desconfiado de panfletos turísticos para suspeitar que “Blu”, no Nordeste da Bela e Santa Catarina, não é uma eterna Oktoberfest, com gente loura por todos os lados, na qual somos recebidos por sanfoneiros sorridentes. Milhares de garotas com cara de Vera Fisher não brotam feito begônias do Vale Europeu, com uma caneca de chope gelado numa mão, um prato de eisbein na outra.
Marcelo
vem de um lugar chamado Progresso, por ironia, região que custou a conhecer o
asfalto, o coletivo, o poste de luz. “Somos uma família de alemães do fim do
mundo. Depois do nosso bairro tem as montanhas e mais nada”. A mãe era
doméstica, o pai operário. A vida, uma lenha. Nas pirambeiras da região, ser
branco, ter olhos claros e sobrenome alemão não é, a rigor, passaporte para o
Sul Maravilha. Alguém pode se chamar Labes e consumir a juventude na limpeza das
casas de família, arruinar a saúde numa tecelagem, repetir a sina do
alcoolismo, envelhecer num subemprego e – no caso do hoje escritor – estar
sujeito a abusos sexuais na infância. “Há o fascismo dos pobres”, repete. É do
que trata Três porcos, livro categoria
“escrita de si” – um transe entre o ficcional e o biográfico – cuja proeza é
ganhar a cumplicidade do leitor ao tratar de um assunto que provoca repulsa: a
pedofilia.
O
trauma de Marcelo menino estava encruado, num canto da alma. “Eu falava de tudo,
menos disso”. Até que contou o que lhe aconteceu, meio que ao acaso, numa
conversa por WhatsApp com a amiga poeta Amanda Vital, a quem dedica o trabalho.
Bateu barata-voa. Acabou na terapia, mas a psicóloga pouco interessada
respondia mensagens durante a consulta. Passou para a escrita – vertiginosa e
anacrônica, com surpresas em série, todas tiradas da vida como ela é. “Não
creio que dê para se curar escrevendo, mas se eu resolvesse tudo, os conflitos
não apareceriam e o livro não sairia. Precisava dele cru”.
Por
um desses milagres da arte, permanecemos ao lado de Marcelo, ali rebatizado de
Rafael, um protagonista em carne viva, que salta no tempo, lambendo feridas.
Numa página brinca de jogar pedras num ônibus, noutra espanca um burguês num
mictório de supermercado, noutra sofre por ver a companheira descer a escada e
partir. Ele cumpre o que promete – uma experiência literária. Como o
autor/narrador ainda não se acertou com passado, nos livra de jogos ou
segredos. “Eu escrevo no calor da hora”, diz. É como se tivéssemos autorização
para deitar com ele no divã, lugar de onde assistimos impotentes aos episódios
trágicos que “roubam o homem que ele poderia ter sido”. De quebra, nos tornamos
solidários com sua vingança, acompanhando-o, mais de duas décadas depois dos
acontecimentos, para perto dos abusadores, passar tudo a limpo.
Pois é: a essa altura, o título do livro, claro, faz todo sentido. Não estamos diante da fábula dos Três Porquinhos. Labes, por sinal, dedica algumas páginas para falar dos porcos – onipresentes na cultura e na gastronomia alemã. São animais domésticos com 44 dentes, criados para o abate, mas também podem matar e devorar os que os mantêm cativos. Eis a chave.
Confira trechos da obra:
“Homens se reconhecem. Um homem forte reconhece outro homem forte como um oponente e já direciona suas armas contra ele. Os homens fracos nos reconhecemos de outra maneira: olhamo-nos com pena, e por mais que queiramos nos ajudar, nos sabemos fracos: isso limita qualquer tentativa de nos curar e nos proteger uns dos outros. Voltei ao escritório com pena de Bruno, que não deva ter dezoito anos e já estava perdido no mundo.” (p. 15)
“Ela me perguntou se eu queria de novo confundir as pessoas. Isso faz parte dessa literatura de que tu quer fazer parte, a nova literatura contemporânea brasileira? E antes que eu respondesse, emendou: Por acaso tu quer que as pessoas tenham pena de ti?, que que elas esqueçam que tu é um homem, branco, hétero e a coisa toda? Disse a ela que eu não era mais um escritor branco e privilegiado, porque afinal eu era pobre, sempre fui, não tinha como reacertar a vida porque estive sempre no lugar errado...” (p. 37)
“Valter participava dos meus dias. De início, pouco, porque eram encontros esporádicos os que tínhamos. Mas logo ele passou a almoçar às terças e quintas-feiras na casa da patroa da mãe. Eu saí da aula e caminhava umas quadras, subia um morro dolorido de tão íngreme, chegava para o almoço. Sentávamos à mesma mesa, a mãe e eu, que o resto da família. Valter sentava-se ao meu lado, contava histórias, fazia jogos de mágica com talheres. Tinha um lado menino nele que abraçava o menino que eu não queria deixar de ser, púbere, pré-adolescente, dor nos ossos e no coração.” (p. 82)

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