José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Rosy, o bolero do adeus
José Carlos Fernandes
19/02/2022 17:48
Dona Rosy com seu famoso mapa onde apontava suas viagens pelo mundo. | Arquivo
“Olá, dona Rosypsilon”, provocava o diagramador Mário Cesar Nascimento, vulgo Goiaba, ao cumprimentar a veterana Rosy de Sá Cardoso, na redação da Gazeta do Povo. A brincadeira surgiu porque os paginadores volta e meia derrapavam e cravavam no crédito um “Rosi”, para tormenta da jornalista. Ela corrigia, com a autoridade de quem solta raios pela palma da mão. Dava medo, menos no Goiaba, que logo virou “Goyaba” e ajudou a turma toda a se aproximar daquela mulher que sabíamos ser única – segundo ela, a primeira Rosy da cidade, e com ípsilon. O episódio resume bem a história.
Quando Sá Cardoso chegou à Gazetona, em 1977, tinha nome feito na praça, com passagens pelo melhor da imprensa local. Ao recebê-la no time de editores, o publisher e amigo Francisco Cunha Pereira Filho (1926-2009) lhe disse que seria preciso aumentar a tiragem do jornal, tamanha a popularidade da nova colaboradora. Não estava blefando. Àquela altura, Rosy somava mais de 30 anos de onipresença na cena paranaense.
Seu début ocorreu em meados da década de 1940. Foi uma tempestade perfeita. A guria que parecia talhada para um “bom casamento” se tornou cantora de rádio, carreira pouco recomendada para moças de fino-trato. Cantava boleros e tangos, temperados pela voz contralto e com tino para o clima de “fossa”, como se dizia. Ao final do show, Rosy jogava rosas para a plateia. Disposta a romper a fronteira dos pinheirais, estagiou na cena carioca. Passou com nota alta no temido programa do Ary Barroso e chegou a gravar um disco – do qual, infelizmente, não se tem registro.
“Além de tudo era bonita, a desgracida…”, disse, certa vez, o fotógrafo, memorialista e jornalista Cid Destéfani, autor da página “Nostalgia”, na Gazeta. Cid, que não era dado a elogios, alistava-se entre os admiradores da colega. À beleza de camafeu, segundo descrições, some-se a elegância – customizava os vestidos e não tinha medo de alças, decotes e tomara-que-caia, em nada devendo às estrelas do jet set. Uma foto dela, no Jóquei Club, saiu publicada na revista Cruzeiro. Queixos caíram. Mas não se tratava de mais um rostinho da high society. Curiosa e dedicada, tinha no currículo ser a melhor aluna da classe – dona de um francês cintilante e com ampla defesa do espanhol e do inglês. Mais: era oriunda de um clã tradicional – seu avô atendia pelo nome de João Gualberto, um dos heróis da Guerra do Contestado, credencial que aumentava a audiência da moça, naquela pré-história da internet. Rosy valia um reality inteiro.
“Para prostituta, faltou pouco…”, provocava, aos risos, um de seus grandes amigos, o jornalista João Dedeus Freitas Neto, o “Freitas”, como ela o chamava. A bobagem – que ela levava na esportiva – tinha a ver com o incômodo dos parentes ao ver Rosy se apresentar na boate do Hotel Braz, quando deveria estar numa novena da Igreja da Ordem. Uma de suas avós quatrocentonas chegou a chamá-la de “a vergonha da família”, crítica à qual ela respondeu virando as costas, uma de suas especialidades. Pois que falassem: pagava as próprias contas, algo raro entre as mulheres daquela época.
Uma das explicações mais precisas para o “fenômeno Sá Cardoso” foi dada por sua prima, a escritora e pesquisadora francófila Maria Theresa Brito de Lacerda: “Ela teve a sorte de ficar órfã cedo”, escandalizou Eza, como era chamada. Com a morte precoce do pai, Jayme, Rosy não ficou sob a tutela de algum tio ou irmão mais velho, como de costume. À revelia da estirpe, dona Xaguana, a viúva, passou a fazer bolos e a costurar para fora. Rosy e a irmã Regina começaram a trabalhar na prefeitura. Juntas financiaram os estudos do caçula da casa, Jayminho, e conquistaram uma independência incomum às “mocinhas da cidade”, como escreveria Eza. Por essas e outras, Rosy cantava na Rádio Guairacá sem dar satisfações a ninguém. A mãe a apoiava. Exemplo? Quando a filha artista se apresentou no programa “Hora do Pato”, na Rádio Nacional, houve um apagão de luz em Curitiba. Pois dona Xaguana catou o rádio, foi para a rua e ligou a traquitana numa bateria de carro.
“A matriz do disco que gravei chegou aqui quebrada”, contou Rosy, em entrevista, sobre o fim de um sonho e o começo de outro. Em 1947, um calo nas cordas vocais a impediu de cantar. Chegou a se consultar com o mesmo médico de Ângela Maria, a Sapoti. Recomendaram-lhe uma cirurgia. Deve ter sido um dos poucos momentos de sua biografia em que amarelou. De volta à capital, o padrinho musical Aloísio Finzetto arrumou para ela um “bico” no jornal O Dia. Em 1.º de agosto estava com a carteira assinada, proeza que nenhuma outra mulher que colaborava na imprensa curitibana tinha conseguido. Nasceu ali a jornalista, papel que desempenharia por quase 70 anos, com a intensidade de uma cantora de boleros.
Rosy, claro, era uma profissional livre e independente rodeada de homens por todos os lados. Que mulher na Curitiba dos anos dourados podia bater papo num café da XV com João Dedeus Freitas, José Erichsen Pereira, o Jeep, ou Bacila Netto? Eram seus colegas de máquina Olivetti e de pauta, afinal. Para entortar ainda mais os olhos vesgos da inveja, nos anos 1960 Rosy entra para o time que implanta a televisão no Paraná, ao lado de naipes como Ary Fontoura, Valêncio Xavier e Lala Schneider. No mais, parecia desaforada: fumava em público, usava calça comprida e viajava sozinha. Com o tempo, passou a carregar a tiracolo a mana Regina, também solteira. Ficaram conhecidas como as “irmãs voadoras”.
O jornalismo permitiu a Rosy exercer aquela que foi a maior de suas paixões – mais do que cantar ou de escrever, ela gostava mesmo era de viajar. Sua primeira rodada internacional foi a Buenos Aires, em 1956. Tinha 30 anos e nunca mais parou. Chegou à marca de 86 países, devidamente marcados com alfinetes coloridos num mapa múndi. O total de percursos é uma impossibilidade matemática. A própria jornalista não sabia dizer quantas vezes esteve na França, Estados Unidos ou em sua paixão confessa – Hong Kong. Sem falar no turismo interno. Tinha alma de viajante e encontrava surpresas mesmo que circulasse a 100 quilômetros de casa. Funcionava como um técnico de futebol que assiste a um jogo de várzea e sabe identificar um craque entre os pernas de pau.
A propósito, o povo da redação aprendeu a identificar quando dona “Rosypsilon” ia viajar. Nesses dias, debochávamos, aparecia vestida de “Chokito”, um conjunto surrado de paletó e saia vermelho com grifos em preto, que ela dizia servir para qualquer temperatura no planeta. E dava para lavar na pia. Mala, apenas uma e bem pequena. Orgulhava-se de nunca ter de pegar bagagem na esteira. E se nos dava dicas de onde ficar, listava conventos, fundações assistenciais, hostels, não raro com quartos sem banheiro, tudo “bem baratinho”. “Mas Rosy, parece um muquifo?”, ouvia, volta e meia. Dava de costas – sabia quem era bom ou mau viajante quando a pessoa se mostrava mais preocupada com a acomodação do que com o lugar que ia visitar.
Em resumo, era uma mulher pragmática. Daí sua falta de pachorra para discursos. Dizia ter usado calça comprida quando nenhuma mulher o fazia “porque estava frio”. Aumentou por conta um ano de idade para… apressar sua autonomia. Nascida em 1926, fez constar 1925 nos documentos. Agnóstica, vestia-se de Papai Noel no Natal, para alegrar os filhos dos amigos. Na velhice, sem condições de cuidar de um apartamento e sem o amparo de filhos, mudou-se com Regina para um flat e se desfez de móveis e enxovais antigos. Estranhava todas as revoluções que lhe atribuíam e devolvia com cara de “fiz o que devia fazer”.
Quanto à maior especulação em torno de sua biografia, a de nunca ter se casado, respondia com um lacônico “porque nunca me apaixonei”. Há alguns anos, mexendo nos guardados, encontrou uma pasta com poesias e contos, datilografados. Na pasta, tinha deixado dois bilhetes para quem achasse o material: 1) “Ler depois da minha morte” – assinado: Rosy. E mais abaixo: 2) “Jogar fora sem ler” – assinado: Rosy. Desobedeceu a si mesma e mostrou os versos e prosas a alguns eleitos de seu vasto círculo de amigos. Uma delícia.
São escritos de juventude – românticos na maior parte. “Estava gostando de alguém, Rosy?” Devolveu, não sem irritação, que não faltou quem lhe arranjasse amores imaginários, os “encontrinhos”, hoje “contatinhos”. Um dos pretendentes se chamava Adalto Araújo, de família ervateira, irmão da crítica de arte Adalice Araújo. “Mas que nada”, disse. Gostava de falar com Araújo sobre cultura em geral, poesia em particular… – o envolvimento não teria passado de uma invencionice dos que se incomodavam com a solidão daquela guria sensacional. Quanto aos poemas de amor, em especial os escritos em espanhol, deu a entender, eram boleros que gostaria de cantar.
Agora que Rosy partiu, permito-me imaginá-la feliz, jogando rosas para a plateia, interpretando “Perfídia”, de Alberto Dominguez. Suspeito que passou pela vida tendo saudade da hora mais linda do show – os aplausos. Era o que diziam seus olhos.
Bravo, Rosy.
*Rosy de Sá Cardoso morreu em 3 de fevereiro de 2022, de causas naturais. Tinha 95 anos.