José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Sobre a ditadura: Narciso tem a palavra

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
03/06/2018 21:00
O literato, publicitário e ativista político Antônio Narciso Pires de Oliveira, 68 anos, é um sujeito falante. Nada – nem o tempo nem as derrotas – lhe sequestram a palavra dita veloz, bem posta, uma frase amarrada à outra. Parece movido à urgência, sobretudo se acionam o assunto que mais lhe diz respeito: a ditadura militar iniciada em 1964.
Poucos – talvez o Elio Gaspari – o venceriam nesse páreo. Sua gravação na série Depoimentos para a história – resistência à ditadura militar no Paraná tem duas horas e 37 minutos – apenas a primeira parte. Um tratado sonoro. Poderia discorrer sobre aqueles tempos durante uma jornada inteira, sem que lhe escape o nome e o sobrenome de um guerrilheiro abatido pela repressão; a formação precisa de alguma célula revolucionária; ou mesmo episódios tidos como lenda urbana, a exemplo da passagem de Che Guevara por Curitiba em 1967, a caminho da Bolívia. O que ele sabe a respeito vale um livro.
Somente um tema interrompe a energia verbal de Narciso Pires: a tortura. A voz lhe falta. Dá curto no fio da memória. O raciocínio se esconde em nuvens esparsas. “Você sabe que é um fenômeno cultural, né? No Brasil, sempre houve, nunca acaba”, rodopia, para se certificar de que o interlocutor está ciente do buraco de Alice em que despenca. No ano de 1995, depois de inscrever seu nome na luta pelos direitos humanos, Narciso criou a ONG “Tortura Nunca Mais”. Seu intuito, registrar e denunciar casos ocorridos entre 1964 e 1985 – os 21 anos da ditadura militar. Não lhe faltou matéria-prima. E esse foi o problema.
Paralelo ao que lhe contaram os torturados sobre o pau-de-arara, o empalamento, o estupro, o “leite Ninho”, “cadeira do dragão”, os interrogatórios intermitentes, simulações de fuzilamento, cabeças mergulhadas nos tanques e horas infinitas sem dormir, outros depoentes, às centenas, o procuravam para tratar de torturas sofridas, numa delegacia bem próxima, uma semana ou algumas horas atrás. Entristeceu-se. Nem a Anistia, nem a volta dos militares para a caserna, nenhum marco pôs fim à prática de açoitar e prender para arrancar confissões. Denunciar era ato de risco. Seu pequeno exército de Brancaleone, formado por voluntários, não tinha meios de garantir proteção aos que lhe pediam socorro.
Mudou de tática – partiu para os arquivos. Apenas a coleção de depoimentos com ex-presos políticos e torturados capitaneada por ele soma 165 vídeos. É o mais completo acervo do gênero no país, pasto para historiadores e quem quer que esteja disposto a fazer a lição de casa. O ritual de consulta é quase sempre o mesmo: os interessados ligam para Narciso, que abre a porta de ferro – como a de uma cela de solitária – que mantém no 12.º andar do Edifício Asa, na Praça Osório, Centro de Curitiba. É a sede do “Tortura Nunca Mais”. Ali, oferece os documentos da organização e os préstimos de suas lembranças, sempre como que saídas do forno. Borracha no passado, jamais.

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O ponto de vista de Narciso Pires sobre a ditadura forma um capítulo inédito. Na mocidade, teve lá suas ligações com aparelhos de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte. Conheceu o peso dos coturnos e dos cassetetes em Curitiba. Provou de todos os tons de cinza da ditadura. Mas, sobretudo, se tornou “testemunha ocular da história” no Norte do Paraná, território que não mereceu nenhuma série da Globo.
“O Paraná era um bom esconderijo”, brinca. “Ainda temos uma dívida com o que aconteceu por aqui”, afirma o militante eterno que, entre outros feitos, escreveu um livro em parceria com a jornalista Sílvia Calciolari (também com o título Depoimentos para a história), com narrativas que traduzem o inferno vivido por 4 mil presos e algo próximo de mil torturados no estado.
Sua biografia não deixa mentir. Antônio Narciso Pires foi criado em Apucarana, no Norte Novo, em pleno fausto do café. Era sertão? Era, mas a riqueza, o fluxo de forasteiros – do Brasil e fora dele – fazia com que chegassem até lá livros, jornais com notícias sobre o Vietnã, sobre a luta pelos direitos civis dos negros americanos. O mundo num copo de sal de frutas. “Sabíamos que havia pobres desafiando o império. Éramos indignados. Aquilo nos deu uma esperança”.
Narciso não lembra ao certo, mas sabe que ele e seus amigos tiveram acesso às cartilhas de esquerda. E ao contrário do que garantem os histéricos, não foi doutrinado por nenhum professor – “alguns, inclusive, eram subalternos nossos na hierarquia dos movimentos. Duvido quem tenha lido mais literatura marxista do que eu”, pontua, num momento Narciso. O movimento no Norte do Paraná foi de tal monta que o próprio Exército se encarregou de fechar a União dos Estudantes de Apucarana. Pudera. Numa cidade de 50 mil habitantes, aqueles guris “meia cabeleira curta” e calça de tergal conseguiram levar 2 ml às ruas, para protestar contra a morte do estudante Edson Luiz, estopim dos movimentos de 1968 no país.
A “guerrilha de Apucarana” – à revelia da falta de exatidão do termo –, figura entre os episódios ainda debaixo de névoa. Do grupo de Narciso faziam parte dois rapazes que seriam assassinados pela ditadura em 1970: Antônio dos Três Reis Oliveira e José Idésio Brianezi. Quando vai a eventos – no papel de ativista, ex-preso político e ex-torturado –, espanta-se com a ignorância geral em torno dos dois mártires da democracia no Paraná. Faz-lhe as devidas reverências, assim como aos demais companheiros da época de “Nortão”: Geraldo Vermelho, Francisco Vermelho, Manuel Cesar Mota, Valdir Feltrim e Valdecir Feltrim.
Nessas horas, reforça a convicção não pode aposentar sua fala. Uma fala que nos transporta por estradas empoeiradas do Paraná dos anos 1960 e 1970, a porões aos quais Narciso chegou de olhos vendados – algo como o Dops da Rua João Negrão, o Presídio do Ahú, o quartel da Praça Ruy Barbosa, ou o Regimento Coronel Dulcídio, no Tarumã. Um faroeste. Um road movie.
Na sinopse – aos 18 anos, o líder estudantil Narciso Pires vem a Curitiba cursar Jornalismo na UFPR. Com o Ato Institucional número 5, cai na clandestinidade, com o nome de Valter Marcelo Faiçal. “Foram sete meses, mas pareceram 200 anos”, lembra, sobre o período em que andou pelo interior de São Paulo. Daí em diante, difícil acompanhar a sucessão de cenas, em flashes anárquicos que se dão entre 1968 e 1977, quando sai da segunda prisão.
Tem Narciso criando um misto de mimeógrafo com serigrafia para imprimir o Voz Operária, para o PCB. Seu depoimento ao delegado Ozias Algauer – que pediu que falasse à televisão sobre como foi cooptado. Não falou. “Àquela altura, eu pertencia à Polop e namorando a Ação Libertadora Nacional do Marighella. Estava envolvidíssimo… Mas a repressão não sabia.” Tem o militante a bordo de um Ford 49, que acabou espatifado num paredão da Serra do Cadeado. E outra feita na boleia de um Fuque emprestado, cruzando o Paraná grande. “Foi assim que aprendi a dirigir”.
Houve cena parecida à de um episódio da minissérie Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. Numa ocasião, a estudantada de Apucarana se reuniu num barracão em Maringá. Uma líder, durona, enfurece ao saber que um dos militantes vai se casar. E solta: “Você tem de escolher entre a namorada ou o fuzil”. Na novela de Braga, escolhe o fuzil. Na que Narciso presenciou, ficou com a namorada.
A graça em torno das paixões revolucionárias ajuda a faze descer, a seco, a lembrança do dia em que o irmão de Narciso, Lauro – “nada a ver com o pato”, como se dizia – foi torturado uma noite inteira para confessar o paradeiro do irmão foragido. As ameaças a seus pais – ele funcionário público federal, ela, dona de casa. “Me entreguei”. Era 1975 e a caçada se chamava “Operação Marumbi”. Àquela altura, tinha sido procurado por Terezinha Zerbini para trabalhar em prol da Anistia. Não pôde atendê-la. A sair da cadeia, no ano de 1977, tinha essa tarefa – assim como operar mimeógrafos, sua sina. Foi para as ruas, panfletos à mão, formou comitês. Ainda tinha a voz. E memória. “Sou um arquivo vivo”, brinca. É seu lindo apelido.