Não lembro ao certo quando ouvi – pela primeira vez – que um caderno de anotações poderia servir de matéria-prima para historiadores. Julgava, tolo, que a verdade dos fatos morava nas atas da Câmara Municipal. Ao saber, recordo que pronto imaginei quantos segredos estavam guardados no livro dos fiados do seu Edevar, o dono da mercearia que funcionou aqui na frente de casa, nos idos de 1960.
As 1001 informações embutidas nos quilos de feijão comprados pelos vizinhos foram só o começo. A partir daí, a vida, sempre cheia de razão, se encarregou de tornar mais sedutor de que todo o resto os compêndios de micro-história de Philippe Ariès, Jacques Le Goff, Michele Perrot e Theodore Zeldin. Tratam da cama, da mesa e do quintal mais do que das guerras. Roubam a vez dos romances, com perdão à heresia. Viciam, tornando-nos descarados bisbilhoteiros, doidos por detalhes, cronistas do insignificante. Em vez de relatos monótonos sobre verdades para boi dormir, oferecem um gabinete de curiosidades que provam, por “a + b”, que as revoluções passam pelo cotidiano – o lugar onde tudo principia.
Faz poucas semanas, soube que um desses cadernos – guardado desde o final do século 19, por gerações de mulheres negras de Florianópolis, todas da mesma família – inspirou um romance histórico com título divertido e pilhado de sentidos: Sai da frente, estafermo!. Os escritos do tal guardado são como uma carta na garrafa jogada ao mar. A letra, ainda que torturada pelos rigores da caligrafia, é linda como um risco de bordado. Página a página, o texto à mão cobre 170 anos de notícias sobre batizados, casamentos, doenças e mortes ou anotações corriqueiras sobre a primeira ida das crianças à escola. Como de praxe a esse tipo de documento, cumpriu uma longa pena. Sobreviveu a uma enchente cinematográfica, amarelou na gaveta, transou com os fungos, até sair do armário, virar prosa e provocar encantamentos em série.
O catarinense Delman Ferreira – um dos herdeiros do caderno de Leopoldina, Marcolina, Cândida, Maria Clara e Diná – falou do assunto com o amigo de mais de três décadas, Paulo de Sá Brito. Curitibano radicado em Santa Catarina, Paulinho é dado a pesquisar memórias familiares e quetais. Decidiram-se pela arriscada operação “romance a quatro mãos”, de modo a completar com pesquisa e imaginação as pistas deixadas pelas antepassadas de Delman. Os dois senhores viraram de novo colegiais de calças curtas e meias três-quartos.
A primeira tarefa foi dar contas sobre o “crime” que estavam cometendo: eram dois senhores, afinal, escrevendo sobre um diário de mulheres. E mulheres negras – todas marcadas pelo racismo. Passada a fase do divã, encontraram seu lugar da fala e se debruçaram feito Sherlocks sobre o acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Precisavam saber como se vestiam, o que comiam e por onde circulavam as Juremas e Teresas catarinenses de 1890 e 1958, de modo a entender como, sei lá, as gurias do livro saíam de casa para comprar peixe no Mercado Público.
“A gente via um filme na cabeça”, resume Paulinho, ao sacar, notícia a notícia, que as parentas de Delman não se limitaram a chorar atrás da cortina, ainda que tivessem motivos para tanto. O cruzamento das anotações, notícias, anúncios, dissertações, livros de história da vida privada acabou por revelar uma saga silenciada – impossível não ficar tocado ao vê-las como figurantes de episódios feito a Abolição, a Guerra do Contestado ou a Gripe Espanhola. Da Leopoldina que não era da nobreza, mas uma letrada escravizada em Florianópolis, os autores chegaram a alfabetizadoras, como Cândida, e a professoras de chão de fábrica, como Maria Clara e Diná. Usavam giz, lousa, guarda-pó – instrumentos que lhe davam voz. Tudo sem anestesia.
“O que mais me impressionou foi descobrir que a resistência dessas mulheres negras se deu pelo conhecimento. Clara era colega de sala de Antonieta de Barros”, ilustra Brito, ao lembrar que as mulheres da caderneta estavam a centímetros de distância da jornalista, professora e política que, com a irmã Leonor, se converteu um mito do movimento negro no Sul do país. E por aí toca a banda. A alegria dos autores se assemelha àquela um dia descrita por José Saramago, ao explicar por que o passado lhe atiçava tanto: “Não faço arqueologia. O que eu quero é desenterrar os vivos. A História soterrou milhões de homens [e mulheres] vivos”.