Me alisto entre os fãs da série Faz de conta que Nova York é uma cidade, dirigida por Martin Scorsese e protagonizada pela norte-americana Fran Lebowitz. Para além das blagues da escritora –  uma mal-humorada profissional –, a produção é um notável exercício de geografia humana. O esforço que Fran  empenha para entender o lugar onde  vive – não raro com delicioso espírito de  porco – pode ser replicado em todo e qualquer canto do planeta. Curitiba,  inclusive.
À revelia de sua fachada, a capital  paranaense, claro, não é Nova York. Mas o exercício diário exigido para tragá-la não difere muito do praticado por Lebowitz, a entediada do metrô. O mais penoso desses obstáculos diz respeito aos clichês, tatuados na nossa alma. Paralelo à propaganda de cidade modelo, “colou” aqui o rótulo de lugar de “gente fechada”, da qual não se arranca um “bom dia” nem por decreto. Não poucos  tratam a propalada “autofagia” e “maldade” curitibanas como uma tese irrefutável, passível de ser observada por um  telescópio da Nasa. Faz mal? Faz. Enxergamos “uma” Curitiba – justo a mais cacete.
É uma lenha derrubar esses pensamentos obscurantistas, posto que se sustentam num estranho fenômeno: parte da população adora cultivar a fama de cidade antipática. E o faz com a mesma mesura com que dá lustro nos  metais da sala. O “entojo de nascença”,  feito um broche de ir à missa, seria um  distintivo em relação ao resto do país. Bobagem, né: o atestado de “Brasil diferente” não dá direito a tomar chá das cinco com a rainha Elizabeth.
O automarketing negativo é tão esquizofrênico que muita gente “de  fora”, na tentativa de agradar, me diz:  “Você nem parece um curitibano”. Refuto à queima-roupa: “É que eu  nasci do lado de lá da linha do trem”. No que não falto com a verdade. Criado no Água Verde, nasci no Novo Mundo, bairro cujo nome é um manifesto proletário, um verso livre. Orgulho vileiro. Tento mostrar com  minha intriga municipal que a cidade  não cabe na palma de nenhuma mão. Inútil tentar reduzi-la a um relicário de  madrepérola.
De resto, repito meu rosário. Digo que vi gente intragável em todos os lugares pelos quais passeei – incluindo a festiva Goiânia ou a calorosa Campo Grande. Brinco com fogo e repito aquela frase da  Marilena Chauí sobre a classe média.  Lembram? A empáfia metida a grife não é uma exclusividade dos pinheirais.  Defendo que é melhor a gente investir na  carne-de-onça do que na cara de bunda.  No mais, quem garante que aquele curitiboca faixa preta, que tanto nos irrita, não nasceu, sei lá, em Pato Branco?
Brincadeiras à parte, minha resposta parte de uma análise comprovada. Curitiba não seria o lugar que é só com base do que foi desenhado nas pranchetas do Ippuc. Um lugar xenófobo, onde ninguém se cumprimenta, seria  estéril em riquezas e em cultura. Os  números não mentem. Somos gregários. Somos criativos: os artistas locais – muitos e geniais – salvam a nossa pele.
Longe de mim dizer que CWB está  livre das sombras, mas é cruel reduzi-la a um deserto de afetos. Em três décadas de jornalismo, entrevistei muita gente bamba, que me ajudou a entender  alguns comportamentos locais. O fanatismo pelas filas, o se arrumar para ir à padaria, o jeitão desconfiado, o sotaque que parece uma metralhadora de filme B, as visitas ligeiras e o bom dia – dito para dentro – não são regra, nem crime.
Admito que tem dias – e não são  poucos – que, acuado pelos babacas, sinto os mesmos dissabores que tantos  alegam. Curitiba vira uma tela do Miguel  Bakun. Assopro a ferida. Digo a mim mesmo que é uma aldeia como tantas –  e que sempre haverá o outro lado da  linha do trem.