José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Viajar, um verbo preciso e impreciso
jornalísticas – não raro emerge o escapismo, a insatisfação e a insegurança com
a família, o trabalho e o país, maquiados em respostas que indicam: vontade de
estar em outro lugar, onde quem sabe as coisas não estejam tão fora de ordem.
Não causa espanto se todos os desarranjos trazidos pela pandemia acabarem redundando
em surtos de disposição em cruzar fronteiras. No senso comum, aliás, é o que se
ouve: se puder, fuja.
É uma pena que a experiência de viajar seja reduzida ao pó do consumismo, ou à crença tola de que a vida é “fora daqui”
haja uma reviravolta nas mentalidades. A da indústria do turismo – que, debaixo
do chapéu do “entretenimento”, é a terceira maior do mundo, abaixo apenas da
indústria bélica e da automobilística – e a dos próprios viajantes. Explico.
Quem já viu de perto a máquina do turismo, mesmo que pela fresta da porta, sabe
que se trata de um cachorro grande. As cartas estão sempre marcadas, em
especial para os chamados “marinheiros de primeira viagem”, os que não dominam
idiomas e os iludidos pela crença de que viajar é sinônimo de esbanjar. O
viajante acaba indo aonde o levam e pelo preço que lhe é cobrado.
catálogo se comporta como uma criança mimada – peripécia, me permitam, na qual
os brasileiros são pródigos. Vestidos da armadura do consumidor, atazanam
recepcionistas, guias e quem mais tiver o azar de cruzar na sua frente a cada
vez que algo lhes pareça insatisfatório. Nessas horas, parecem-se à hilária
nova rica vivida pela curitibana Katiuscia Canoro, na versão anterior do
programa de humor Zorra Total: “Tô
pagano”. Sinto vergonha até hoje de um casal de médicos que infernizou a
gerência de um hotel de Bordeaux, no Sudoeste da França, por acharem o café da
manhã “uma pobreza”. De nada adiantou o profissional lhes dizer que nosso grupo
estava saindo às quatro da matina e que as leis trabalhistas francesas impediam
que a turma da cozinha trabalhasse àquela hora.
despreparados para certas viagens pode até ser justa, mas tende a ser elitista.
O “não gostar” da Ribeira do Porto e a falta de desconfiômetro com a própria
ignorância pode ser uma experiência mais rica que a de gostar de um castelo do
Vale do Loire. O descontentamento tende a ser parte de um processo de digestão,
que resulte numa mudança paulatina de ponto de vista.
ida à Europa, foi ao Louvre, mas intimado pela companheira. Achou um porre. Voltou
para casa disposto a uma nova rodada pelo Velho Continente, desde que o passeio
não incluísse o maior museu do mundo. Sugeri que da próxima vez fosse ao Museu
D’Orsay – menor, passível de ser visitado em poucas horas. Sei que vai
encontrar lá obras impressionistas, cuja ilustrações viu nos livros de escola. Será
mais palatável. A arte de viajar tem dessas coisas – exige prática e
estratégias. No mais, para que condená-lo às trevas: vi muita gente do ramo das
artes dizer, baixinho, não ter mais saco para a maratona exigida pelo Louvre.
Da mesma maneira que o futebolista consegue enxergar um craque num jogo de várzea, o viajante castiço vê a cápsula do mundo em lugares comuns
Sá Cardoso. Em seu apartamento, no centro de Curitiba, conserva um mapa múndi,
preso à parede, congestionado com alfinetes, que marcam os países que visitou.
Foram 87 ao todo, boa parte deles mais de uma vez. O número só não se
multiplicou mais porque Rosy sofre agora os achaques próprios da idade. Mas se
pode dizer que foi até o osso. Já tinha dor nas juntas o bastante quando alugou
um carro para cruzar as freeways
americanas. Em outra ocasião, saracoteou em Las Vegas – um dos lugares que,
assegura, ninguém deve morrer sem visitar. Quando lhe peço dicas de hotel,
manda sempre o endereço de lugares simples, baratos e – minha tormenta – sem
banheiro no quarto. Gaba-se de nunca ter despachado malas, pois leva o mínimo e
traz quase nada. Perda de tempo e de juízo torrar cartão de crédito nas
magazines. Na redação, quando a víamos chegar com uma malinha de rodas e
vestida de “Chokito”, um conjuntinho de malha vermelho malhado, semelhante à
embalagem do chocolate, sabíamos que estava em revoada.
ritmo, passou a privilegiar viagens curtas – das quais voltava com o mesmo
entusiasmo. Certa vez, contou de uma igreja linda que tinha visto em Joinville.
E das contínuas redescobertas de Paranaguá, cidade onde passou parte da
infância. Da mesma maneira que o futebolista consegue enxergar um craque num
jogo de várzea, o viajante castiço vê a cápsula do mundo em lugares comuns. Não
substituem a Basílica de São Pedro – como portento histórico e arquitetônico –,
mas podem dar conta da experiência da viagem, que é outro babado.
– Viagem à roda do meu quarto e Expedição noturna à roda do meu quarto. Tratam,
como se sabe, da viagem literária como algo mais prazeroso do que a viagem
propriamente dita. Mas o alerta que o autor do século 18 deixa é perfeita: não
se vai a lugar nenhum sem imaginação. Nem a Paris, nem a Campo Largo. Em seu
subestimado A arte de viajar, o
filósofo suíço Alain de Botton faz as honras a Xavier de Maistre, ao lembrar
que, talvez, a primeira viagem seja ao redor do quarto. Na sequência, Botton
resume o “viajar” ao que sentimos, num aeroporto, ao ver os anúncios de voo. De
repente aparece lá: “Monterrey – 19 horas”. Por um minuto pensamos deixar tudo,
mudar de nome, e recomeçar do nada, no México. Viajar nada mais seria do que
esse impulso vital de se desvestir, para estranhar-se, ver-se noutra pele,
reconhecer-se e voltar para casa.
textos sobre viagem do jornalista Zeca Camargo. São um tratado, escritos por um
viajante interessado e nunca óbvio. Na mesma pegada, o livro Terramarear, de Ruy Castro e Heloísa
Seixas, reúne diários de bordo sobre lugares desprezados, que estão “ao lado”
dos standards turísticos. Por fim, o
imbatível jornalista e psicanalista norte-americano Andrew Solomon acrescenta
um ponto ao gênero “livro sobre viagem” com Lugares
distantes – como viajar pode mudar o mundo. Solomon visita fronteiras
modificadas por reviravoltas políticas e ambientais e conversa com personagens
inesperados de espaços que nunca colocaríamos na nossa listinha de compras.
Arrisquem-se.