José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Vidas em estado de dança
José Carlos Fernandes
22/07/2022 13:33
“Precisamos cuidar do Fernando”, diz, aos risos, a dançarina Mônica Infante. O Fernando em questão, o Proença, concorda. Nos últimos meses, o homem de múltiplas atividades – jornalista, produtor, ator, pesquisador – se lançou numa tarefa de arrancar os cabelos: reunir cinco veteranas coroadas da dança, em atividade no Paraná, num único espetáculo. Seria sua estreia como diretor e, por força do ofício, como coreógrafo. E assim foi.
A empreitada lhe rendeu cinco tardes semanais, por semanas, uma com cada dançarina, sem que uma soubesse o que a outra estava preparando. Tudo no melhor do estilo laboratório avançado, seguido de enxaquecas inevitáveis. “Elas são dificílimas”, admite, com humor soberano, dando corda à fama das bailarinas. Nenhuma delas recusa o rótulo, e por pouco não irrompem uma sessão de aplausos para saudar o artista que se lançou numa missão “quase” impossível: reuni-las num único espetáculo, só que em baia própria, uma espécie de cinco em um.
Pois deu certo. Mês passado, o mítico Teatro José Maria Santos, no Centro de Curitiba, abrigou a montagem 5 danças, estrelada por Cíntia Napoli, Cínthia Kunifas, Rosemeri Rocha, Marila Velloso e Mônica Infante. Os finais das apresentações foram apoteóticos, com a plateia subindo ao palco para tilintar taças com as bailarinas, das quais parte da audiência foi aluno ou aluna, a exemplo do próprio Fernando Proença, que em algum momento de sua vida esteve sob a batuta das mulheres que agora dirigiu. A peça virou um “Sonho de uma noite pós-pandemia”.
A ideia – que não poucos chamaram de maluca – nasceu da admiração de Proença pelo quinteto. Sabia muito sobre elas – inclusive que, ainda que amigas e parceiras entre si, nunca estiveram em grupo, num único palco, dividindo iluminação, cenário e bilheteiro. Ao se dar conta de que sua ideia de colocá-las numa cápsula valia ouro, de 2017 em diante começou a juntar munição para reunir as meninas. Era vencer ou vencer. Em meio à captação, levou um corridão da tal da covid-19, viu o céu escurecer, mas não vergou. Nem poderia. A essa altura, suas cinco musas estavam conquistadas pela proposta. Deu no que deu.
O saldo da experiência cênica batizada de 5 danças devia ir para os anais da República, tamanha sua importância para a cena cultural. Trata-se de um marco de 2022. Talvez a expressão não exista, mas representa uma espécie de “engenharia estética”. A montagem exigiu buscar interlocutores que validassem a proposta. O currículo de cada dançarina-atriz põe as pernas a tremer. Por pouco, os pares não deitaram o encenador no divã, a exemplo da performer Eleonora Fabião, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pudera: Proença não estava apenas montando e dirigindo um espetáculo – ele mexeu com o livro das vidas de cada uma das dançarinas. E nas vidas tocadas por elas.
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Cintia & Cinthia, Rosemeri, Marila e Mônica nasceram na mesma década – entre 1960 e 1969. Cresceram em cidades diferentes – Florianópolis, São Paulo, Curitiba, Juiz de Fora – e estavam entre a mamadeira e o piniquinho assim que surgiram novidades como a minissaia, a pílula anticoncepcional e a ida do homem à Lua. Quase que via de regra, cedo descobriram que queriam dançar – seja dando piruetas no quintal, a exemplo da mineira Mônica Infante, ou enfrentando os rigores da dança clássica, como a paulista Cíntia Napoli. A seu tempo e modo, todas migraram de seus berços, fazendo escola em Nova York ou Londres, ou vindo para Curitiba, atraídas pela fama do corpo de baile do Teatro Guaíra. Aqui, o universo conspirou, como se diz.
Brilharam? Brilharam. Mas com o agravante de que, em algum momento deixaram o centro da cena e se tornaram professoras de dança, nas suas mais diversas vertentes. Não esperem delas que se comportem como uma magricela trajando tou-tou ao som de “Pour Elise”. Pularam do clássico para as mais delirantes viagens em busca do corpo – e por tanto tempo que, somando o tempo de magistério das cinco, chega-se a mais de 180 anos. Apenas caçulinha da trupe, Cíntia Kunifas, professora da Unespar, leciona há quase 30 anos.
Essa variação de frequência entre dançar e ensinar a dançar fascinou Fernando Proença: suas cinco mulheres não são apenas profissionais de fino-trato, são também pensadoras do ofício que abraçaram. Tinham muito a mostrar, mas sobretudo um bocado a dizer. Em 5 danças, a bailarina é aquela que dança, mas também aquela que fala. O que contam é de requebrar o coração dos poetas; e de pôr para correr os caretas.
Basta dizer que nenhuma delas se intimida em usar a expressão “sistema da dança”, cuja descrição se assemelha a uma sala de tortura. Nesse quesito, toda lenda é a mais pura verdade – ensaios intermináveis, doideiras para perder peso, críticas impiedosas à grossura das coxas e ao tamanho dos peitos, coreógrafos obsessivos e outras tempestades. “Tive todas as doenças do Cisne negro”, debocha Mônica Infante, ao se referir ao nauseante filme de Darren Aronofsky, estrelado por Nathali Portman e Mila Kunis. A contar pelas descrições – que brotam enquanto as gurias tomam café – a realidade é mesmo bem mais cruel do que a ficção.
A graça é que não para por aí. Ao construírem danças teatrais, autorais e biográficas com Fernando Proença, as cinco acabaram por verbalizar como reagiram ao “sistema”. Antes da gota d’água, ergueram seus próprios castelos de significados para termos como “corpo” e dança”. Cíntia Kunifas – a que se rebelou mais cedo – sonhava ser como Cíntia Napoli, “a” bailarina do Guaíra. Ao mesmo tempo, “eu não queria me repetir; queria ter um trabalho próprio”. Ao pular essas fogueiras, descobriu a “educação somática”. “Encontrei o corpo que vinha antes da dança”, diz, sobre suas transas sensoriais com a energia, respiração, consciência corporal.
Mônica Infante seguiu movimento libertário semelhante. Depois de um estágio de cinco anos no Royal Ballet de Londres, desembarcou em Curitiba, com passaporte para trabalhar no Guaíra. Questões paralelas atrapalharam os planos, e até que foi bom. Vinculou-se ao Studio D, de Dora de Paula Soares, e enfrentou os demônios que vinham desde a infância. “A bailarina que quero ser é o ser humano que eu sou. Mas esse desejo era incompatível com a ideologia da dança. Havia a disciplina equivocada de ter 35 quilos. Não podia comer, nem ir na balada, tudo o que meu humano adorava. Fui uma pessoa cortada no meio”. Saldo final – formou um grupo com a artista plástica Laura Miranda e fez com que a dança encontrasse o corpo. Ambas passam bem.
“Não me interessa a maneira como as pessoas se movem, mas o que as faz se mover.”
Pina Baush, coreógrafa.
A essa altura da conversa com “as cinco”, o que não falta a essas mulheres peso pluma são palavras que pesam uma tonelada. “O corpo de cada bailarina é um acervo, um arquivo do que dançaram e do ensinaram a dançar”, dizem. Cíntia Napoli, com emoção indisfarçada, vai ao confessionário. “Tive minha primeira dança aos 6 anos de idade; aos 39 anos, o que fazia já não a realizava; aos 61 anos, tive minha primeira dança transformadora”, avalia. Foi justo em 5 danças. Marila Velloso segue o passo. A artista que quando menina associou dançar a viajar muito – o que fez sem economia – hoje quase boceja ao pensar nas questões hodiernas da dança. “Não me interessam mais. A dança já me modificou. Me acompanha por onde vou. Surge quando caminho. Na visita aos parentes...” O sossego só virou desassossego quando foi convidada por Proença para um experimento. Sempre quis dançar mais velha, admite. Não só ela, como sabe.