José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Vilma, Vista Alegre, Boa Vista

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
18/06/2021 10:00
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Muitos riram de uma blague de Selton Mello no cativante filme Palhaço (2011). No longa, o ator e diretor contracena com seu guru artístico, Paulo José – interpretam pai e filho e formam a dupla Pangaré e Puro Sangue. A vida é só gargalhada, até que, feito uma Emma Bovary do picadeiro, o jovem mambembe se manda estrada afora, à cata de outras alegrias. Lá pelas tantas, virado num filho pródigo, entregue a um quarto abafado e triste, dá-se conta da verdade de uma frase que ouvia quando guri: “O rato come o queijo, o gato bebe leite e eu sou um palhaço”. A lembrança do ditado o traz de volta para o circo.
A frase só não é mais fatalista do que outra, repetida a esmo pelos sertanejos: “A pessoa é para o que nasce”. Essa filosofia da seca e da dor merece todos os senões, pelo risco de conformismo que comporta, mas tem lá a seu encanto. “Quem nunca” se deu conta de que rodou-rodou sem sucesso, tolo Quixote contra moinhos de vento. Lembro de ter ouvido uma confissão a respeito, em entrevista, de ninguém menos do que o escritor e sanitarista gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011). Ao chegar à velhice, contava, concluiu que tinha escrito mais de 70 livros, alcançado todas as glórias da medicina e da academia, mas entendeu que o que queria, no duro, era ser à imagem e semelhança de seu pai, imigrante da Bessarábia, popular contador de histórias do Bonfim, bairro judeu de Porto Alegre. Pois é: “O rato come o queijo, o gato bebe leite e o contador... conta histórias”.
Lembro dos que se abraçam àquilo para o qual nasceram sempre que vejo as fotografias da paranaense Vilma Slomp, publicadas nas redes sociais, durante toda a pandemia. Vilma, como se sabe, é uma das mais importantes fotógrafas brasileiras, com o adendo de que tem trânsito livre nas artes plásticas, território onde é reconhecida e festejada, sem que ninguém lhe cobre pedágio. Coroações à parte, suas legendas no Instagram e no Facebook têm a simplicidade de um chinelo de flanela ao lado de um fogão de lenha: “Vista Alegre, meu bairro”. Nas imagens que posta, vemos uma CWB franciscana – carros cobertos com lona preta, terrenos baldios entregues à relva, cabides zanzando nos varais, tampas de bueiro, mata-juntas de casas de madeira que ainda existem. Não sei que bicho mora nos olhos e na alma de Vilma, mas tudo o que ela clica se move e é sagrado.
Como ocorreu com a maioria dos criadores, a Covid-19 interrompeu os planos da artista, agora reduzidos ao bater de pernas pela vizinhança. “Está tudo parado”, resume a dona de uma voz maviosa e para quem, como se diz no popular, “o tempo não passa”. A fotógrafa poderia estar na categoria “eterno feminino”, criada na década de 1970 pelo intelectual e cronista Arthur da Távola, ao se referir às mulheres que desafiam espelhos e relógios, inquilinas que são de algum panteão. “Nem eu acredito que estou perto de fazer 70 anos”, entrega. Em Vilma, a beleza se conjuga a uma cumplicidade irresistível: quem está à sua frente se sente a pessoa mais importante do mundo, o que faz de qualquer conversa um novelo de confidências. Ela quer saber quem somos. Seduzidos pela libriana, entregamos um combo: a biografia e a própria imagem.
Pois é essa espécie de diva simbolista que há mais de um ano veste tênis, uma roupa qualquer e sai todos os dias pela Vista Alegre, lugar que escolheu para chamar de seu. A mudança para a Zona Norte de Curitiba se deu há quatro décadas, ao lado do hoje ex-marido, o fotógrafo luso-curitibano Orlando Azevedo. Ali criaram os filhos André e Rafael. Nas caminhadas, não leva a máquina fotográfica, para não dar folga pro bandido. As fotos que nos enchem de vontade de também andar pelo bairro – antiga região de chácaras – são feitas no celular e formam uma coleção de arte urbana, disponível na galeria infinita chamada Instagram. O que Vilma faz nas peregrinações é comparável ao que realizou na série Curitiba Central, publicada com todas as pompas em 2013. Nesse livro tamanho Bíblia de catedral, com quase 400 páginas, resumiu o saldo dos 35 anos em que fotografou o Centro, região onde morou ao chegar de Campo Mourão, Norte do Paraná, para tentar vestibular de Arquitetura e Urbanismo. Nas lentes daquela jovem de sardas estavam vitrines de lojas, o Passeio Público e a Tiradentes, tudo invulgar, vale lembrar.
Por sorte, o plano não deu certo. Em vez de estagiar nas pranchas, Vilma foi parar na vida louca de uma redação de jornal. A passagem como repórter fotográfica pelo finado jornal O Estado do Paraná, do Grupo Paulo Pimentel, foi breve, mas o bastante para deixar uma lona de circo armada no seu inconsciente. Explico. Diferente de Orlando, que no papel de curador e de fotógrafo vai se tornar uma referência na fotodocumental, em preto e branco, Slomp se distancia dos temas realistas e das amarras do fotojornalismo, marcas de juventude do casal. Lança-se num mergulho intimista, com fortes tinturas de discurso de gênero, muito tempo antes de nove entre dez debates terem esse tema como arena. Sexo, objetificação da mulher, envelhecimento, entraram para sua palheta fotográfica. “Eu casei, tive dois filhos e procurei um trabalho que pudesse fazer aqui”, conta, sem rodeios, sobre as contingências da vida adulta. A maturidade – e a liberdade –, quem diria, a empurraram de novo para a “lona do circo”. Fotografa sem truques a Vista Alegre – mas também Boa Vista de Roraima, a quase 5 mil quilômetros de sua casa. A pessoa é para o que nasce.
Pode-se apostar que mesmo entre os que acompanham Vilma Slomp desde os anos 1980, muitos não sabiam que ela tinha tanta gana de atuar como fotojornalista de novo, ou de se aventurar pela fotodocumental. Fez-se uma virtuose em colagens, efeitos, composições, poemas visuais, autorretratos... Parecia bem confortável nas galerias, mas estava guardado que um dia, se os deuses permitissem, iria se perder pela Amazônia. Sua admiração juvenil pela suíça Claudia Andujar – cuja trajetória se confunde com os ianomâmis – ou pela inglesa Maureen Bisilliat, entregue aos sertões e ao Xingu, não era retórica. Queria de fato estar com elas, naqueles lugares, até que não segurou mais a vontade recalcada. Em 2014, já avó, botou uma camisa de algodão, catou repelente, protetor de solar, equipamentos e agenda, lançando-se num projeto que, calcula, nasceu na década de 1960, quando, ainda guria, folheava as páginas da revista Realidade e lia reportagens sobre o Brasil profundo. “O rato come o queijo, o gato bebe leite e...”
Depois da primeira viagem, fez mais quatro, descendo rios como Solimões, Branco, Negro, Amazonas, pernoitando em cidades que só seu diário sabe quais são. As narrativas de Vilma sobre seu encontro tardio com a floresta são uma websérie das boas. Conta as horas para poder voltar, ter com os ribeirinhos, comer o que lhe servem, sentir-se de novo repórter. Seu olhar, contudo, não tem mais a inocência da recém-chegada a Curitiba e que flanava no Calçadão da Rua XV, máquina em punho. Vai caber aos críticos e curadores de fotografia dizer o que Slomp faz quando está possuída pelos rios.
A mulher que enfrenta barras apinhadas ou que pernoita em rodoviárias que parecem saídas de uma cena de Bye, bye Brasil, de Cacá Diegues, brinda as imagens com elementos estranhos ao documentarismo. Empresta-lhes o ne sais quoi dos circuitos visuais por onde circulou. Exemplo? Um boteco das cidades anfíbias da Amazônia, com pinturas de mulheres nuas na parede mofada, na lente de Vilma nada tem de lugar comum. Espaços assim, para ela evocam Matisse e todos os fauves. A arquitetura, igualmente, não lhe desce banal: a madeira carcomida pela água não é decadência, mas construção. O mesmo se diga dos indígenas de pés descalços, seus chapas. Não foram fotografados para provocar pena, mas admiração. Sim, a Vilma do Vista Alegre conversou com cada um deles – que a ela entregaram aquilo que são.

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