Moda e beleza

Conheça a história da Mary Arantes, da Mary Design

Larissa Jedyn
22/03/2012 03:24
O design é ofício, faz parte da marca, mas virou sobrenome. Não há como dissociar a mineira Mary dele. Vale a pena levar dois dedinhos de prosa com a designer de acessórios e roupas para sonhar em mudar um pouco do mundo, criar alguma coisa bonita, fazer um bolo gostoso para tomar café com o vizinho. Um brinquinho criado por ela conta alguma história. Com vocês, Mary Arantes, da Mary Design.
Como você entrou na moda?
O que eu vou contar, só percebi depois de anos de análise. Era uma menina ingênua, que andava descalça, brincava de boneca e não tinha noção do que era a vida numa capital. Mas a menina de 12 anos, que estava chegando em Belo Horizonte, precisava ser alguém e a forma que achei para me diferenciar foi o jeito de me vestir. Meu pai era alfaiate e eu pegava tecidos dele para fazer minha roupa. Minha mãe me ajudava. Quando comprava uma sapatilha, bordava. Se comprasse um colar pronto, desmontava e pendurava os meus santinhos de primeira comunhão. Passei a ser um outro ser estranho. Mas estava criando um estilo próprio pra me diferenciar. E foi graças a isso que entrei na moda e minhas roupas e bijuterias, que não existiam no mercado, iam sendo encomendadas pelas amigas. Mas eu não achava que isso viraria profissão.
E transformar esse talento em profissão foi difícil?
Nesta época eu fazia faculdade de Odontologia e vendia essas roupas para as amigas e para umas lojas, e comecei uma fabriqueta. Tive de começar a comprar meu material no Rio de Janeiro e em São Paulo. Levava meu pai ou meu irmão junto, porque precisava de ajuda para carregar. Fazia tudo de ônibus: de Belo Horizonte ia para o Rio, corria as lojas durante o dia, à noite ia pra rodoviária, tomava banho por lá mesmo, pegava outro ônibus para são Paulo, trabalhava o dia inteiro e voltava para casa, pois no dia seguinte tinha aula. Não tenho saudades. Tenho orgulho. Isso foi necessário para que eu pudesse aprender e virar uma empresa, senão, seria pequena para sempre.
Como você estruturou seu negócio?
Trabalhei por 15 anos exclusiva para um grupo de lojistas aqui de Belo Horizonte. Quando eles não conseguiram mais comprar toda produção, me indicaram para trabalhar com uma loja no Rio de Janeiro, cuja dona tinha todos os contatos com a TV Globo. Era engraçado, porque era eu morando num conjunto habitacional e a Marilia Pêra usando meu colar na minissérie Quem Ama Não Mata. Foi tanta loucura, todo mundo via meu colar, queria e eu não tinha linha de produção para fazer. A solução foi colocar as velhinhas e as crianças da vizinhança para me ajudar.
De onde vem a inspiração para o seu trabalho?
O começo de tudo lá no Vale do Jequitinhonha marcou a minha história. Tudo o que eu sei e o que eu faço aprendi lá. Vim de uma cidade extremamente pobre, não tinha livros para ler, mas tinha personagens extremamente ricos à minha volta, como a mulher que trabalhava o barro, o homem que preparava a festa de São João. Tinha ainda as feiras populares, os burrinhos, as frutas. Tudo isso virou a minha cartela de cor, as minhas referências. Hoje a Mary Design está comemorando 30 anos de mercado.
Foi fácil adaptar esse repertório emocional em um produto?
Costumo dizer que ninguém compra um produto, mas uma história, uma emoção. Quem o veste incorpora isso. E eu achava que já tinha gente demais fazendo o igual. Então, procurei o caminho mais difícil, o feito à mão, o complicado. Resolvi trabalhar temas nacionais, levantar bandeiras e questões que precisam ser revistas. Fiz, por exemplo, uma coleção sobre Guinhard, um pintor nacionalmente conhecido, que não tem família, mas que, daqui a pouco, se eu não falar dele ninguém mais vai lembrar.
Que discurso vem acompanhado da bijuteria?
A gente está num mundo tão populoso, mas vive só. Você fica um dia inteiro num escritório, sozinho. Quando sai lá fora, precisa de algo que o apresente para os outros. A bijuteria entra aí. Quando vejo uma moça com um anel imenso no aeroporto, já imagino quem ela é, penso com que trabalha. As coisas falam sobre nós. E as pessoas que gostam de bijuteria são assumidas, querem comunicar. Elas falam “me olhem, cheguei, estou aqui”. Não é à toa que a bijuteria está em lugares tão privilegiados, como o colo, a orelha, o punho, os dedos.
Sempre existe um caráter social por trás do seu trabalho?
Hoje não me importa mais o fazer bijuteria, mas o como. Desenvolvo um trabalho em parceria com o Sebrae, chamado Talentos do Brasil, que tem como objetivo levar o design para comunidades carentes. E é aí que você percebe que pode mudar a história de algumas pessoas. Fui convidada há algum tempo para fazer uma coleção sobre pássaros no Amazonas. Só que aquela região não é como a gente imagina. Numa conversa com algumas mulheres, descobri que seus filhos não conheciam pão. Uma delas contou que, quando as crianças não podiam dormir por causa da fome, ela ia para o mato caçar passarinhos para fazer uma sopa. Fazer uma coleção e bordar passarinhos coloridos seria uma mentira. Propus, então, falarmos sobre a verdade deles. Bordei em uma peça uma pena e a frase “é preciso ser leve”; em outra “meus filhos não conheciam pão, comiam pássaros”. A gente tem de mostrar isso para tentar melhorar a vida dessas pessoas.
É por isso que na sua última coleção (apresentada no Minas Trend Preview) você fez um manifesto em favor do trabalho, da valorização dos talentos?
Também. Temos de trocar as palavras importadas made in pelo hand made. Precisamos valorizar o feito a mão, que lá fora é caro. A Lena Pessoa, uma mineira que faz as vitrines da Hermés e da Pucci, vem para o Brasil para bordar as peças que vai usar nos seus trabalhos em Paris, porque lá não dá. Ainda temos artesãs maravilhosas, só que a cada vez que o feito à mão é subvalorizado, elas vão deixando de trabalhar, os filhos não querem aprender o ofício dos pais e isso vai se perdendo. É por isso eu sempre tento colocar nas minhas coleções o artesanal. Vou atrás de ONGs, asilos, de gente faça esses trabalhos e lanço um outro olhar sobre eles.
Você já vê o retorno desse trabalho?
Isso é tão importante que, uma vez, uma moça – filha de uma mulher que fez crochê para mim em uma coleção – me ligou para agradecer a oportunidade dada a sua mãe. Não só pelo dinheiro, mas porque com aquele dinheiro que ela recebeu conseguiu fazer o mercado pela primeira vez na vida. O orgulho dela é impagável. Sem contar que o colar que ela fez saiu numa revista e já estava suada de tanto mostrar pra vizinhança.
O que você está fazendo agora?
Tenho 55 anos, estou na fase que já pintou e bordou e posso doar um pouco do que aprendi para os outros. Esse trabalho de consultoria tem crescido muito. Fui a uma cidade chamada Brás Pires para terminar uma coleção de moda feita de palha e uma das ações foi um desfile com as senhoras da produção para a comunidade. A última entrada foi de um casal (ele, mesmo cego colhe a palha, e ela, tece as peças) segurando um grande colar de palha, como se fossem um rei e uma rainha. Foi maravilhoso. Todo mundo ficou superemocionado. É tudo muito simples, mas é feito para tocar. Mais que um desfile de moda é um desfile de autoestima.
Como é seu processo de criação?
Só consigo criar com um embasamento teórico, acho que é mais verdadeiro. Preciso escrever, me convencer. Tenho facilidade com textos, eles são biográficos, eu vejo correlação. Eu crio, faço, escrevo, tudo tem de ter coerência com o trabalho. Até as fotos. O olhar tem de ser o meu. Quero que o mundo veja aquele ângulo.
A cada coleção você expõe sua natureza, suas emoções. Isso é bom pra você?
Eu nunca penso nisso como sendo negativo pra mim. É como seu eu fosse contra uma corrente, que acha que moda é glamour, passarela, ser magra. Eu gosto mais da moda comportamento, que tem um pouco de dor, muito trabalho, não é só beleza, é emoção, é memória. Quando entrei nesse mundo, pus na cabeça que a Mary Design é uma coisa e a Mary Arantes é outra. Existe uma faixa no chão. Quando eu a atravesso, vou lá, experimento e volto para trás da faixa, que me coloca no lugar. Sou igual e vou morrer igual a todo mundo.