Gucci reclama de réplicas de papel de seus produtos
Michael Forsythe, Hong Kong. The New York Times
16/05/2016 16:01
Loja com várias réplicas de produtos de luxo feitas em papel. Foto: Lam Yik Fei/The New York Times. | NYT
Na Rua Java em Hong Kong, um par novo de mocassins marrons de couro da Gucci, cuidadosamente embrulhados em papel celofane, estão pendurados em uma vitrine – o melhor negócio da vida, por menos de três dólares.
Só que não desta vida.
Os sapatos são réplicas de papel para serem queimados como oferendas a parentes que morreram – um toque moderno em um antigo costume chinês. Em lojas especializadas por toda a cidade, os enlutados podem escolher entre uma impressionante variedade de produtos para mandar aos entes queridos que partiram, incluindo carros esporte italianos, smartphones, pacotes de cerveja, cigarros, camisas e jaquetas esportivas.
Uma loja, perto do Monastério dos Dez Mil Budas, em Hong Kong, vende até réplicas em papel das refeições do McDonald´s, completa, com fritas, refrigerante e um pacote de algo chamado “Chicken MuNeggtc”.
Mas as bolsas Gucci e os sapatos pelos quais a vovó suspirou quando estava no mundo dos vivos agora também parecem estar fora de seu alcance etéreo. Um comerciante rapidamente tirou os sapatos da vista de um cliente, explicando que eles não estão mais a venda.
Aparentemente, o zelo da Gucci em defender sua marca se estende ao outro mundo.
Recentemente, sua empresa-mãe, a Kering, sediada em Paris, mandou uma carta para seis lojas locais que vendiam as oferendas de papel, dizendo aos comerciantes que parassem de vender réplicas de produtos Gucci, porque estavam se utilizando de uma marca famosa que enfeita sapatos, carteiras, chapéus, joias e bolsas femininas.
“Estamos tentando fazer com que saibam que a Gucci é uma marca registrada que queremos proteger. Respeitamos totalmente o contexto do funeral”, disse Charlotte Judet, porta-voz da Kering em Hong Kong, por telefone.
Oferendas elaboradas para os mortos estão à venda no mundo todo, disponíveis para a compra pelos vivos por toda a Ásia, do Camboja à China continental. Na China, os enlutados, com alguns cliques em um mouse ou toques em um smartphone, podem comprar réplicas de tudo, de bonsais a televisões de tela plana, para entrega em domicílio.
Como os salários aumentaram e o consumismo tomou conta do continente, as réplicas de papelão, que antes estavam limitas a notas falsas, se tornaram cada vez mais elaboradas. Uma loja oferece uma unidade em papel de um ar condicionado, possivelmente para os parentes que possam ter ido parar nos andares inferiores do outro mundo.
A prática até já migrou para o outro lado do oceano. Em 2011, em Nova York, um lojista de Chinatown foi preso por vender réplicas de papelão de bolsas e sapatos de grife e acusado de violar direitos autorais.
Mas a Gucci preferiu tomar uma posição em Hong Kong, não em Pequim, Nova York ou Bangcoc. As forças em jogo essencialmente definem o lugar de Hong Kong no mundo. Esta é uma cidade que combina uma cultura de consumo sem barreiras, uma grande ligação com as antigas tradições da China e um sistema legal robusto, herdado dos ingleses, que respeita e reforça os direitos da propriedade intelectual. Hong Kong é, em sua essência, uma fusão da cultura oriental, do capitalismo global e da lei ocidental.
“A população de Hong Kong cumpre a lei. Tivemos o benefício do domínio britânico por muito tempo”, afirmou por telefone Alice Lee, professora associada de Direito da Universidade Hong Kong que foca em propriedade intelectual.
Mas Alice diz que a Gucci teria dificuldade de provar que os fabricantes de oferendas de papel infringiram sua marca registrada. Para processar com sucesso por infração de marca, explicou ela, uma empresa teria que demonstrar que as pessoas confundem réplicas de papel com produtos Gucci reais, o que é bastante improvável.
Seu colega Haochen Sun, professor que estuda proteção de marcas de luxo, avisa que o caso da Gucci é viável sob as leis de Hong Kong se argumentar que as oferendas de papel, comercializadas a poucos quarteirões dos pontos de venda da empresa, turvam o “caráter diferenciado” da marca Gucci ou a prejudicam.
As sutilezas da lei de marcas registradas ainda precisam chegar às ruas.
Ao invés de risos, a carta da Gucci, que não ameaçou com ações legais nem pediu qualquer compensação, fez algumas lojas de oferendas de papel se ajustarem. Na Rua Java, essas réplicas para os mortos com a marca Gucci desapareceram das prateleiras, já que os lojistas ficaram com medo de perder seus pequenos negócios em um processo judicial.
Sentada em um banco na parte de trás de uma loja, além dos incensos e dos pacotes de cigarros falsos com marcas como “Danhill”, “Lucky Strlke”, “Malbero” e “Sailem”, uma proprietária, que pediu para ser identificada apenas pelo sobrenome, Chan, diz que ela e outros não tiveram muita opção, porque seus negócios são muito pequenos.
Os lojistas lamentam o que acham um absurdo total. Seu público alvo – os mortos – não parece se cruzar com os abastados, ou os aspirantes a ricos, clientes da Gucci, que estão vivos, respiram e frequentam as lojas de Hong Kong, um dos principais mercados da empresa.
“Nossos clientes são totalmente diferentes. Eles queimam essas coisas para mandar para os espíritos”, diz um lojista em frente do Monastério dos Dez Mil Budas, que deu apenas seu nome, Lan.
Chan e Lan não receberam cartas da Gucci. Chan leu sobre o assunto em um jornal local e rapidamente exorcizou sua loja de réplicas de papel de produtos da empresa.
Hoje, a palavra “Gucci” raramente aparece no mundo das oferendas de papel. Quase sempre, os fabricantes – de algum lugar da China continental – alteram a ortografia. Os “mocassins Gucci” da loja ao lado estão rotulados de “Guuci”. Lan, que nem ouviu falar da carta de advertência, tinha uma bolsa de papel “Gueei” para oferecer.
Chan diz que a ideia da Gucci ameaçá-los era estranha. “Não tem nada a ver com a gente”, afirma.
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