Saúde e Bem-Estar
“A fibromialgia não está em um gene”, diz reumatologista em livro

Fibromialgia atinge principalmente mulheres. Foto: Bigstock.

“A ciência da dor” é seu primeiro livro. O autor conversou com a Gazeta do Povo na ocasião do lançamento em Curitiba, que aconteceu recentemente na Livraria da Vila:
A fibromialgia é uma dor difusa, que acontece nos quatro quadrantes do corpo, que não tem uma causa orgânica, inflamatória ou mecânica por trás e que dura pelo menos três meses. Ela acontece muito mais em mulheres do que em homens — [a proporção é de] cerca de sete a nove mulheres para cada homem. A faixa etária pode ser qualquer uma, mas é mais comum em mulheres de 40 a 60 anos.
Essas mulheres têm muita dor e isso é bastante limitante. [Ela] é uma das causas mais comuns de falta no trabalho no mundo e tem uma incidência muito alta, de 2% a 4% de toda a população, em quase todos os países. A fibromialgia não tem causa orgânica clara. [As diretrizes mundiais sobre a síndrome concordam] que os tratamentos medicamentosos, por mais que levem a um alívio inicial, em longo prazo são ineficazes. Estamos falando de gente que peregrina de médico em médico, faz um monte de exames — ou seja, consome muitos recursos — e que não tem sossego nem do ponto de vista de diagnóstico, nem de tratamento.
“A fibromialgia não é uma doença, é uma personalidade. Ela faz parte das respostas naturais do ser humano.”
Na prática, sim. Porque essa é uma reação física do corpo a como a pessoa lida com as dificuldades ou com o jeito de alcançar seus objetivos. Por exemplo, se eu tenho uma dificuldade pela frente, por causa disso fico ansioso e meu cérebro não desliga durante a noite, eu começo a dormir mal, minha cabeça começa a ficar nebulosa, eu tenho dificuldade de raciocinar no dia seguinte, fico todo dolorido por causa disso. Isso é uma reação àquele desafio, [mas se torna um diagnóstico] quando é tão frequente que atrapalha a minha vida.

Primeiro, sobre a função da dor. Existe uma síndrome em que a pessoa não sente dor — que ficou famosa em um episódio [da série de tevê] “House”. Essas pessoas raramente chegam à idade adulta e, quando chegam, têm sequelas gravíssimas. Sem a dor a gente não se defende, não percebe o que está acontecendo de errado e isso é quase incompatível com a vida. A dor é a luz vermelha no painel.
Indo para a segunda questão, [em um estudo] na década de 1970, eles pegavam pacientes que tinham doenças terminais e muita dor — câncer, por exemplo — e faziam um tipo de lobotomia no cérebro desses pacientes, separando as zonas que recebem dor da zona afetiva. Depois da cirurgia, perguntavam ao paciente “E aí, como está a dor?”. Eles respondiam: “Idêntica, doutor. Em intensidade, está igualzinha a de antes. Mas agora ela não incomoda mais”. Isso é muito importante porque mostra que a dor é só um sinal. O que faz a dor ser ruim é o conteúdo afetivo que a gente atribui a ela. Se você está se depilando, por exemplo, você aguenta tranquilamente um nível [alto] de dor. Por quê? Porque você sabe o que está acontecendo, sabe que não há um risco. E, mais ainda, aquilo está ligado a uma coisa que te dá bem-estar.
Exato, ou tatuagem. Agora, se você estivesse sentindo aquele mesmo nível de dor da tatuagem, da depilação e não soubesse o que está acontecendo, você ia pirar.
Então, o que é a dor? É um sinal neurológico de que algo está errado. E a mesma dor incomoda muito uma pessoa e não outra, ou a mesma pessoa em um momento e não em outro, por causa do conteúdo afetivo [associado a ela].
O cérebro do fibromiálgico interpreta não só a própria dor, como qualquer desconforto, como um risco real. Então ele liga todas as reações normais a isso: contração muscular, uma maior atenção não só à dor, mas ao que pode estar acontecendo, o nível de preocupação aumenta, o sistema nervoso simpático, que é o responsável pelo estresse, é muito mais ativado e assim por diante.
Essa diferença do sistema nervoso para o restante do corpo é apenas acadêmica, teórica. O sistema nervoso é o corpo e o corpo é o sistema nervoso. A dor está em todo lugar.
Desde o receptor na periferia — se você topa o dedão, por exemplo — a dor está ali naquele choque, nos receptores sentindo o choque, nas células recebendo o choque — elas secretam muitas substâncias que vão dizer que elas foram afetadas —, todo o trajeto nervoso. O sistema nervoso responde àquilo e redistribui o sinal por todo o seu corpo. Você responde com a sua pele inteira ficando mais sensível a um novo estímulo que vai vir — porque se você sentiu um, pode sentir outro. Enfim, não existe essa diferença de onde está a dor.
Isso depende muito da intensidade da dor crônica. Na melhor das hipóteses, [o paciente com dor crônica] é igual a qualquer outra pessoa: de vez em quando eu tenho dor e vai apontar quando eu estou me sobrecarregando. No outro extremo, [a dor crônica] é completamente incompatível com a vida. São pessoas que não conseguem ter uma vida normal, se relacionar e trabalhar normalmente.
Existem escalas que a gente usa. Por exemplo, quando estudamos a fibromialgia, usamos escalas bem definidas e validadas no mundo todo para tentar classificar a intensidade da dor que o paciente experimenta e qual o impacto que essa dor tem na vida dele. Então, existem jeitos científicos ou mais objetivos de mensurar isso.
Mas isso é muito mais importante em trabalhos científicos do que na prática. Na prática, todo mundo quer ter uma vida normal e o [alto] nível de dor que ele tem vai ser contrário a essa vontade. Então o que define qual o nível de dor e qual impacto ela tem é quanto [o paciente] consegue ter uma vida normal.
Elas devem procurar ajuda quando acham que a dor está diminuindo o potencial delas. Mas cuidado. Porque o motivo pelo qual eu escrevi esse livro é exatamente a incapacidade dos médicos — isso todos os médicos, no mundo todo, não apenas brasileiros — de lidar com esses casos. De entender, acolher e direcionar. Os remédios não são eficazes e quando você dá um diagnóstico de fibromialgia pode estar passando a impressão de que [a pessoa] tem uma doença. E no momento você dá um diagnóstico, uma sensação de doença, e não dá nada em troca.
Eles funcionam em curto e médio prazo. Se eu tenho dor crônica e tomo remédio, isso vai me deixar bem [em um período] de um a seis meses. Após os seis meses, começo a ter dor de novo. Em um ano, é como se eu não estivesse tomando remédio. Aí você volta ao médico e ele aumenta a dose ou soma outra medicação. Quando chega nesse momento, os efeitos colaterais são sempre muito importantes — às vezes piores do que a própria doença. Tanto isso é verdade que menos de 20% [dos diagnosticados com fibromialgia] estão tomando os remédios prescritos em longo prazo.
[A solução é] ajudar essa pessoa a criar outras respostas, mais funcionais, aos mesmos desafios. E isso é feito de diversas maneiras. Uma delas é via cognição — como a pessoa enxerga a si mesmo dentro do ambiente onde ela está. A maneira mais eficaz de conseguir isso é com psicoterapia. Das linhas de psicoterapia (sem querer dizer qual é a melhor delas), a que melhor publica resultados nesse sentido é a terapia cognitivo-comportamental.
E a segunda coisa é via corpo físico. O fibromiálgico normalmente negligencia completamente o corpo físico, sempre tem outras prioridades, nunca para para dar ao corpo o que ele precisa, que é repouso, prazer, cuidado. O melhor jeito de fazer isso é através de atividade física — desde que o paciente saiba o que fazer com aquilo. As diretrizes mundiais concordam que atividade física é fundamental, mas muitas vezes o paciente não consegue fazer porque, quando faz, ele tem mais dor. Então o médico ou o psicoterapeuta precisa orientar o paciente sobre como ele deve se relacionar consigo mesmo durante atividades físicas.
Das mais comuns, a fibromialgia definitivamente é uma das síndromes mais responsáveis por afastamento do trabalho. Lombalgia — dor lombar mecânica — é outra das mais frequentes. Dor de cabeça (cefaleia tensional) também é muito comum, [além das] síndromes que a gente chama miofasciais — que são grupos musculares como torcicolo, como dor de um lado só do corpo. As mais intensas fogem um pouco do escopo deste livro e da minha pesquisa, que são, por exemplo, neuralgia de trigêmeo ou dor por pedra nos rins.
Depende da definição de dor que você vai adotar. Se dor é uma luz vermelha no painel indicando que algo está errado ou esteve errado, eu diria que sim. Mesmo essa dor emocional significa que algo está errado, que há uma perda. Isso é tão real e intenso quanto a dor física e muitas vezes é impossível separar as duas coisas. Muitas pessoas têm dores físicas por razões emocionais e só. E, às vezes, elas não reconhecem isso.