Este pode ser o conselho mais palatável a ser ouvido de um médico: beba uma taça de vinho, cerveja ou coquetel todo dia e isso pode prevenir infarto e ajudar a viver mais. Só que o mantra segundo o qual beber moderadamente faz bem para o coração nunca passou por um teste científico rigoroso, e uma nova pesquisa associou até a ingestão moderada de álcool ao aumento do número de diagnósticos de câncer de mama e alterações no cérebro.
Isso não impediu a indústria de bebidas alcoólicas de promover a mensagem de que o álcool faz bem ao patrocinar encontros científicos e novos pesquisadores na área. Agora, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos dará início a um estudo clínico para, pela primeira vez, avaliar se um drinque por dia realmente previne infartos. E adivinhe só quem está pagando a maior parte da despesa?
Cinco empresas que estão entre os maiores fabricantes de bebidas alcoólicas do mundo – Anheuser-Busch InBev, Heineken, Diageo, Pernod Ricard e Carlsberg – prometeram US$ 67,7 milhões para uma fundação que arrecada dinheiro para o Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês), diz Margaret Murray, diretora do Programa de Pesquisa Global do Álcool do Instituto Nacional de Alcoolismo e Abuso do Álcool, que irá supervisionar o estudo.
A decisão de permitir que a indústria do álcool pague a maior parte do custo causou preocupações entre pesquisadores que acompanham o tráfico de influência na ciência.
“A pesquisa mostra que estudos patrocinados pela indústria quase invariavelmente favorecem os interesses do setor patrocinador, mesmo quando os pesquisadores acreditam estar imunes a essa influência”, diz Marion Nestle, professora de nutrição e estudos alimentícios da Universidade de Nova York, autora de vários livros sobre o tema, incluindo “Food Politics: How the Food Industry Influences Nutrition and Health” (Política alimentar: como a indústria alimentícia influencia a nutrição e a saúde).
Um esforço internacional para estudar os benefícios e riscos do álcool vai recrutar quase oito mil voluntários com pelo menos 50 anos, em 16 lugares do mundo, começando em centros médicos dos Estados Unidos, Europa, África e América do Sul. De forma aleatória, os participantes serão aconselhados a se abster de álcool ou a ingerir uma única dose de sua bebida preferida todos os dias. O estudo vai acompanhá-los por seis anos para ver qual grupo – quem bebe de forma moderada ou os abstêmios – tem mais infartos, derrames e mortes.
Os organizadores da análise reconheceram que será um desafio recrutar voluntários, que não saberão com antecedência se precisarão se abster ou beber. Quem for do grupo que bebe será reembolsado em parte pelo custo do álcool.
George F. Koob, diretor do instituto do álcool, diz que a análise será imune à influência da indústria, em um teste imparcial para saber se a bebida “em moderação” protege de doenças cardíacas. “O estudo poderia sair pela culatra contra os fabricantes de bebidas alcoólicas, que terão de viver com as consequências. O dinheiro da fundação e do NIH não tem restrições. Quem doa para o fundo não tem qualquer influência – nenhuma contribuição para o estudo, nenhum tipo de palpite”, afirma Koob.
Contudo, ele e muitos dos pesquisadores e instituições acadêmicas que desempenham papéis fundamentais no estudo têm ligações próximas com os fabricantes de bebidas alcoólicas. Entre 1999 e 2003, Koob atuou no conselho consultor médico da Fundação de Pesquisa Médica sobre Bebidas Alcoólicas, agora chamada de Fundação de Pesquisa sobre o Álcool, organização dos fabricantes que também lhe concedeu verbas para pesquisa de até US$ 40 mil anuais entre 1990 e 94, diz John Bowersox, porta-voz do instituto do álcool do NIH. De fato, muitas das pessoas envolvidas no estudo têm vínculos financeiros – pessoais ou por meio de uma instituição – com o dinheiro dos fabricantes.
Quem financia a pesquisa?
A Universidade Harvard, centro do estudo clínico, tem uma relação antiga com os fabricantes do setor. Em 2015, a Universidade aceitou US$ 3,3 milhões da Fundação de Avanço da Responsabilidade Alcoólica, grupo fundado por destilarias, para estabelecer uma cátedra em psiquiatria e ciências do comportamento.
Em 2005, a faculdade de Saúde Pública de Harvard também foi criticada quando um professor se associou à Anheuser-Busch para promover os benefícios da cerveja à saúde, e a Anheuser doou US$ 150 mil para bancar bolsas de estudo para doutorandos.
Um dos principais investigadores do estudo clínico, o Dr. Eric Rimm, da Faculdade T.H. Chan de Saúde Pública de Harvard, reconheceu por meio de várias declarações financeiras que foi pago para falar em conferências patrocinadas pelos fabricantes e que teve as despesas de viagem reembolsadas. Ele afirma que se passaram oito ou nove anos desde esses eventos e que, atualmente, não mantém relações com o segmento.
O Dr. Diederick Grobbee, outro dos principais pesquisadores, que mora na Holanda e é encarregado pelos locais clínicos fora dos EUA, afirmou durante entrevista telefônica que recebeu dinheiro de pesquisa do Instituto Internacional de Ciências da Vida, organização ligada aos fabricantes que apoiam a pesquisa científica.
Em Baltimore, o estudo será conduzido pela Dra. Mariana Lazo-Elizondo, da Johns Hopkins, que recebeu verbas de pesquisa em 2013 e 14, num total de US$ 100 mil, da Fundação de Pesquisa Médica sobre Bebidas Alcoólicas. Ela não concedeu entrevista.
Em Copenhague, o principal pesquisador será o Dr. Lars Ove Dragsted, que revelou em estudo científico publicado no ano passado que realizou pesquisa em instituições que receberam apoio dos fabricantes de bebida. Ele não respondeu às solicitações de entrevista.
Em Barcelona, o estudo será chefiado pelo Dr. Ramon Estruch, que, em fevereiro, ajudou a dirigir uma conferência sobre “Vinho e Saúde” na região vinícola de La Rioja, Espanha, que contou com patrocínio de vinicultores. Estruch se recusou a revelar conflitos de interesse financeiros ao “Journal of Studies on Alcohol and Drugs” e não respondeu aos pedidos de entrevista.
O principal investigador do novo estudo, Dr. Kenneth J. Mukamal, professor associado de Medicina e cientista visitante da faculdade de Saúde Pública, afirma nunca ter recebido financiamento dos fabricantes. Mukamal, que publicou dezenas de estudos sobre os benefícios do consumo alcoólico à saúde, garante não estar ciente de que empresas de álcool davam apoio financeiro ao estudo clínico.
“Este caso não tem nada de diferente em relação a um estudo tradicional do NIH. Não tivemos qualquer contato com o pessoal do setor de bebidas alcoólicas no planejamento.”
A porta-voz da Pernod Ricard, uma das fabricantes que prometeu dinheiro para bancar o estudo, diz que os diretores da empresa concordaram porque ficaram impressionados com a escala ambiciosa do estudo. “Nunca vimos um estudo com tanto alcance ou dimensão”, diz Sandrine Ricard, subdiretora de responsabilidade social corporativa da Pernod Ricard.
Ela observa que os fabricantes “não terão influência” na pesquisa, e que “não queremos ter”. “Acreditamos, entretanto, que os resultados serão bons. Estamos otimistas nesse sentido.”
Gemma R. Hart, vice-presidente de comunicação da Anheuser-Busch, afirma que a empresa tem investido pesado em iniciativas para promover o consumo responsável e tem interesse em promover pesquisa para guiar abordagens baseadas em provas para mudar o comportamento do consumidor. “Isso faz parte de nosso compromisso geral para reduzir o uso pernicioso do álcool”, afirma.
Embora a companhia esteja ajudando a financiar a investigação, “nosso papel está inteiramente limitado à verba doada. Não temos influência no estudo. Ficaremos conhecendo o resultado do estudo junto com todas as outras pessoas”, declara Hart.
Hipóteses: álcool faz bem ou mal a saúde?
Os cientistas começaram a aventar a hipótese de que o consumo moderado de álcool faça bem para a saúde há quase cem anos, quando um cientista da Johns Hopkins publicou um gráfico mostrando que consumidores moderados viviam mais tempo do que os grandes consumidores e os abstêmios. Críticos da hipótese alcoólica dizem que o consumo moderado pode ser apenas algo que as pessoas saudáveis costumem fazer, não algo que as torne saudáveis.
Apesar da hipótese do coração saudável, muitos estudos associaram o consumo moderado a mais problemas de saúde. Um deles constatou um índice aumentado de fibrilação atrial entre consumidores moderados. E um estudo publicado em 2017 sobre câncer de mama pelo Instituto Americano para a Pesquisa do Câncer determinou que existem provas convincentes vinculando o consumo de uma única dose diária de álcool a uma elevação no risco do câncer de mama antes e após a menopausa.
Defensores da hipótese do álcool moderado, por sua vez, citaram os efeitos anticoagulantes do álcool e sua aparente capacidade de elevar o nível do chamado bom colesterol para ajudar a explicar seus benefícios. O novo estudo clínico determina o consumo moderado como uma dose por dia – 350 mililitros de cerveja, 150 mililitros de vinho ou 50 mililitros de destilados.
A definição é consideravelmente menor do que tem sido comumente estabelecido como nível moderado de consumo por homens, há muito tempo definido como duas doses por dia. O consumo moderado para mulheres foi determinado como uma dose por dia.
Os voluntários serão homens e mulheres com pelo menos 50 anos, com doença cardiovascular ou nível elevado de vir a tê-la. Bebedores problemáticos e indivíduos que nunca consumiram álcool serão inelegíveis, bem como determinadas mulheres com risco elevado de câncer de mama e pessoas com alguns sintomas médicos. Os investigadores não determinaram como vão verificar se os participantes irão seguir a recomendação de uma dose por dia ou consumo zero.
Limitações da pesquisa
O estudo tem várias limitações. Eventos adversos ligados ao álcool, como acidentes automotivos, quedas graves, problemas cardíacos, abuso de bebida e novos diagnósticos de câncer serão registrados, mas o estudo não é grande ou longo o bastante para detectar elevação no número de diagnósticos de câncer de mama.
Embora a meta dos pesquisadores seja recrutar a mesma quantidade de homens e mulheres e analisar os resultados por gênero, Mukamal afirma que o estudo muito provavelmente não será capaz de detectar diferenças de gênero a menos que sejam bastante claras. A falta de foco nas diferenças de gênero ligadas ao consumo de álcool provocou críticas.
Já se sabe que as mulheres metabolizam o álcool de forma mais lenta que os homens e que a doença cardíaca nas mulheres é diferente do que nos homens. As mulheres reagem de forma distinta dos homens a muitos remédios por causa de diferenças na gordura corporal, tamanho, metabolismo do fígado e função renal. Além do risco elevado de câncer de mama ligado ao álcool, estudos constataram que as mulheres são mais suscetíveis do que os homens aos efeitos tóxicos do álcool no fígado em qualquer quantidade.
Segundo os planos atuais, o estudo do álcool “parte da hipótese de que homens e mulheres são iguais biologicamente, e isso não é verdade”, afirma a Dra. Anne McTiernan, médica e pesquisadora do Centro para Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson, em Seattle, que foi uma das autoras da revisão crítica sobre câncer de mama do Instituto Americano para Pesquisa do Câncer. “Esse tipo de coisa é um problema antigo em alguns estudos do NIH.”
Art Caplan, diretor de ética médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York, afirma que a preocupação é a de que qualquer descoberta a favor dos benefícios do álcool poderia ser facilmente mal interpretada. “Se houver algum benefício à saúde para pessoas com mais de 50 anos com o consumo de uma dose diária, as pessoas vão simplesmente entender que o álcool faz bem e algumas dirão que poderão beber quanta cerveja quiserem.”
LEIA TAMBÉM