Antes de ter câncer, eu colecionava notas de US$2. Como eram raras, achava que davam sorte, mas a verdade é que uma coisa não tinha nada a ver com a outra.
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Durante grande parte da vida, associei as estatísticas baixas com o bom augúrio: fiz parte dos vinte por cento de inscritos que formaram a turma de 1994 de Stanford; quando me candidatei ao primeiro emprego para ser professor de Inglês de uma faculdade de artes liberal, me disseram que tinha superado 700 candidatos; depois que meu segundo livro foi publicado, uma das apresentadoras do programa “Today”, Hoda Kotb, recomendou o romance no ar, para seus milhões de telespectadores, sem nem ter que ser convencida pelo meu agente. Calculei que as probabilidades normais de algo assim acontecer eram de 0,0001 por cento.
Com uma sorte dessas, achei que deveria investir em algum tipo de jogo – e não demorei a ser premiado por uma loteria da qual ninguém quer fazer parte.
No início do segundo semestre letivo de 2014, comecei a sentir dores fortes e muito cansaço, que atribuí ao excesso de trabalho. Fiz uma endoscopia. Dias depois, o gastroenterologista me ligou para dizer que minha biópsia tinha confirmado que eu tinha câncer no estômago. A chance de desenvolver a doença era de aproximadamente 0,9 por cento.
Isso porque o paciente típico é o homem de outras raças que não a branca, entre 60 e 70 anos; eu sou asiático e tinha trinta e poucos. Embora não tenha encontrado dados sobre as chances de desenvolver um câncer estomacal na minha faixa etária, certamente era uma fração da fração dos tais 0,9 por cento.
Na mesma hora quis saber quais as minhas chances de sobrevivência. Meu oncologista não quis dizer, o que me levou ao inevitável rito de passagem de procurar os números no site da Sociedade Americana do Câncer. A página mostra uma característica intrínseca da doença: ela não mata rapidamente. O câncer é a morte por promissória e os espaços para o “quando”, ou mesmo o “se” de quem se encontra nos estágios iniciais não podem ser preenchidos.
Dá para dizer que, depois que me soube doente, parei de me ver como pessoa e comecei a me encarar como estatística. Falava com os médicos sobre números o tempo todo. A radioterapia aumentaria minhas chances? Em quanto? E a quimioterapia? E se eu me tratasse em um hospital universitário? Tenho mais chances por ser jovem? (Na verdade, não.) Ficava analisando os quadros de estudos clínicos, examinando as chances de sobrevivência de acordo com diferentes tratamentos.
Meu cirurgião se recusou a prever meu futuro e me aconselhou a ignorar as estatísticas de sobrevivência, que eram baixas: nove por cento. E apontou o erro cognitivo que as pessoas cometem ao analisá-las. “Se você sobreviver, vai ser cem por cento. Ninguém sobrevive nove por cento; ninguém morre nove por cento”, ele enfatizou.
Os números que realmente importam são 0 e 100, vivo ou morto. Para fazer uma analogia com uma estatística citada frequentemente, 50 por cento dos casamentos terminam em divórcio; com isso, uma parte do cérebro acredita, erroneamente, que de todos os casamentos, metade é digna de divórcio, o que faz parecer que o número seja importante para todos os casais quando, na verdade, não é. Para aqueles que são felizes, é totalmente irrelevante. O que significa que, se eu sobreviver, não vai ter a mínima importância, analisando o fato posteriormente, se superei chances de nove, 19 ou 90 por cento.
Depois de concluir o tratamento, vários meses se passaram e o câncer não voltou. Segundo meus médicos, quanto mais longo o período sem recidiva, menores as chances de haver uma – ou seja, minhas probabilidades de sobrevivência de nove por cento não eram estáticas, mas aumentavam com o tempo.
Em novembro de 2015 alcancei a marca de um ano e sete meses sem sinal da doença e, baseado nos cálculos de um médico amigo meu, minhas chances agora batiam nos 70 por cento. A possibilidade de vencer o câncer de vez era alta – muito alta.
Porém, perto do Natal daquele ano, comecei a ter problemas na hora de comer. Uma noite, logo após uma pequena refeição, comecei a ter a sensação de ser esfaqueado várias vezes no abdome. Tive que ir para o PS, para a primeira de várias internações.
Logo depois já não podia mais consumir alimentos sólidos, só shakes de proteína, e depois de um tempo, nem isso mais podia beber. Estava vivendo à base de 700 calorias por dia e, com 1,77 m, vi meu peso minguar para 47 kg. Caminhar era um esforço tremendo e minha emaciação coincidiu com uma bateria que parecia infinita de tomografias, exames de ultrassom, raios-X, procedimentos e biópsias até a confirmação da volta do câncer.
A doença não retornou quando as chances de recidiva eram altas, mas sim quando finalmente ficaram baixas, ou seja, o fato de meu prognóstico ser positivo, no fim, não adiantou de nada. Meu cirurgião tinha razão ao dizer que os números não preveem coisa nenhuma, nem quando estavam contra mim, nem a meu favor.
Pensando bem, usei minhas chances de sobrevivência não como informação, mas válvula de escape, para medir o volume de esperança ao qual podia me permitir. Elas fizeram com que o meu otimismo, de outra forma injustificado, tivesse base na realidade. No fundo, todo paciente de câncer quer crer que vai conseguir superar a doença e as estatísticas representam o instrumento confuso e implacável que usamos para nos convencer disso.
O câncer, porém, não respeita a natureza racional dos números; ele opera dentro de uma lógica própria, cruel. E em nenhuma outra situação isso é mais verdadeiro que na forma como é tratado hoje em dia. O estágio 4 costumava ser uma sentença de morte para todos os doentes; o avanço da imunoterapia transformou a batalha contra o mal em uma roda da fortuna na qual alguns continuam a morrer, enquanto outros vivem mais tempo e poucos conquistam uma remissão de longo prazo quase miraculosa.
Em um experimento, pacientes com melanoma em estágio avançado que foram submetidos ao tratamento tiveram uma proporção de reação de 50 a 60 por cento. Só que isso não vale para quem tem tumores sólidos: a triagem recente de um remédio chamado Opdivo, por exemplo, beneficiou somente 14 por cento dos pacientes de câncer de estômago.
Minha sobrinha de dez anos outro dia descobriu uma das notas de US$2 que levo na carteira. Nunca tinha visto uma antes e perguntou se podia ficar com ela. Parei, imaginando se não estaria esbanjando minha sorte ou lhe oferecendo o contrário – mas a hesitação foi breve e acabei lhe entregando o dinheiro.
*Samuel Park é o autor do romance “This Burns My Heart” e professor associado de Redação Criativa do Columbia College, em Chicago.