Esquece o que almoçou, mas lembra o que fez na infância? A ciência tem uma explicação
RBS, por Itamar Melo
12/03/2019 17:00
Podemos escolher o que queremos apagar da memória? Foto: Bigstock
Por que lembramos em detalhe de algo que aconteceu há muitos anos, mas não do nosso almoço da última segunda-feira? Será que as memórias ficam guardadas em algum lugar específico da nossa cabeça? Como é que às vezes conseguimos buscar facilmente uma informação, mas em outras ela fica inacessível, apesar de sentirmos que a temos na ponta da língua? O que faz gravarmos umas coisas e não outras? Quem decide, da vastidão de dados, imagens e sensações que nos bombardeiam, os pouquíssimos que vamos manter e os infindáveis que serão destinados ao esquecimento? E será que o que recordamos realmente aconteceu, e do jeito como lembramos? Quantas memórias temos? Elas são imutáveis? Continuaríamos a ser nós mesmos sem elas?
Poderíamos continuar multiplicando as perguntas indefinidamente, porque a memória é um daqueles fenômenos essenciais à nossa vida, mas ao mesmo tempo continua parecendo algo mágico e misterioso. Se o leitor consegue compreender este texto, é porque memorizou letras, palavras, grafias e normas gramaticais. É também porque, neste exato momento, seu cérebro mantém presentes, de alguma forma, as frases anteriores, de modo que a sentença atual faça sentido dentro de um certo contexto.
Usamos a memória quando manejamos um automóvel, reconhecemos um cheiro ou uma melodia no rádio, pressionamos automaticamente determinada letra no teclado do computador, percorrermos um trajeto pelas ruas da cidade, executamos um cálculo ou realizamos as atividades rotineiras da nossa profissão. Para cada mínimo ato, abrimos uma espécie de escaninho e acessamos uma informação que foi arquivada em nós.
“Somos aquilo de que nos lembramos”, afirmou o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004).
Nos últimos anos, a compreensão dos mecanismos de funcionamento desse sistema avançaram bastante. O professor Lucas de Oliveira Alvares, do Laboratório de Neurobiologia da Memória da UFRGS, cita como mais recente revolução na área uma técnica chamada optogenética, que permite marcar e mexer em neurônios que foram utilizados para aprender alguma coisa.
“Essa técnica fez o campo mudar de patamar, porque tornou possível registrar os neurônios que são o substrato físico da memória e, depois, manipulá-los, ativando-os ou desativando-os”, afirma. Outra linha de pesquisa em alta, segundo o pesquisador, diz respeito a memórias traumáticas. A perspectiva é de que pesquisas nessa área ajudem as vítimas de transtorno pós-traumático a lidar melhor com as lembranças difíceis.
“O que se vislumbra é alterar, senão o conteúdo da memória, ao menos a resposta emocional que aquela memória desencadeia. O que em geral acontece é conseguir bloquear a expressão fisiológica de medo da pessoa, fazer que o coração não bata tão rápido. Já ocorreram muitos trabalhos em humanos e aparentemente está funcionando”, diz Alvares.
Essa ação é possível durante um dos mais fascinantes processos envolvidos na memória, a chamada reconsolidação. Para entender esse mecanismo, pode ser interessante fazer uma analogia com um arquivo de texto no computador. Depois de abri-lo para uma consulta, nós o salvamos de novo. Se alguma informação for acrescentada enquanto o arquivo estiver aberto, o texto salvo ficará diferente do que era originalmente.
Descobriu-se que isso também acontece com a memória. Quando evocamos uma lembrança, é como se abríssemos o arquivo da nossa mente onde ela estava registrada, para depois regravá-la, ou seja, reconsolidá-la. No momento da evocação, porém, a recordação fica em uma situação de instabilidade. Se alguma informação diferente se imiscuir, podemos salvar uma memória modificada, diferente da original.
“Cada vez que lembramos de algo, a lembrança pode tomar caminhos diferentes. Pode ser fortalecida, direcionada ao esquecimento ou alterada. É um momento de alta plasticidade e uma janela de oportunidade para direcionar”, observa Alvares.
O perigo das memórias falsas
Apesar das possibilidades clínicas importantes para quem sofre de estresse pós-traumático e da utilidade para o dia a dia (por exemplo: quanto mais estudamos para uma prova, mais informações guardamos, graças à reconsolidação), esse processo também embute o perigo das memórias falsas. E se a testemunha chave de um crime der um depoimento baseado em uma lembrança que não corresponde exatamente ao que ela viu, enviando um inocente para o cárcere? Nos Estados Unidos, já houve casos até de pessoas que confessaram um assassinato e que depois foram inocentadas graças ao DNA. Libertadas, continuavam a lembrar de ter cometido o crime. Uma situação assim pode ser menos exótica do que se pensa.
A pesquisadora Cristiane Furini,do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS, acredita que em algum momento da vida todos nós armazenaremos memórias falsas. Um exemplo clássico, que ela cita, é de situações que guardamos como recordações de infância, mas que na verdade têm na origem a contemplação de alguma foto antiga e de um relato sobre ela feito por uma familiar.
“Os estudos têm demonstrado que a forma como somos indagados sobre uma informação pode fazer gente criar falsas memórias. Se eu perguntar a alguém que testemunhou um acidente se houve vidros partidos carros destruídos, ela vai dizer: “Ah, sim. Foi terrível”. Mas se fizer as perguntas com outra entonação, as pessoas vão dizer: “Um carro encostou no outro, mas não foi muito sério”. No momento da evocação, está presente uma informação que pode entrar como memória. A pessoa se convence de que está lembrando, mas não foi bem aquilo que aconteceu”, afirma Cristiane.
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) tem um conto célebre (Funes, o Memorioso) no qual descreve um personagem que se lembrava de tudo, não apenas “cada folha de cada árvore de cada monte, mas cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado”. Borges apresenta essa habilidade como um tormento paralisante. Funes guardava tanta informação que, para reconstituir um dia, gastava outro dia inteiro. Era alguém talvez até incapaz de pensar, porque “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”.
Nesse conto, Borges chama a atenção para a importância de um fenômeno que tendemos a achar ruim: o esquecimento. A verdade é que precisamos esquecer.
“O esquecimento é antes de tudo um mecanismo de eliminação natural de informações irrelevantes, sem o qual viveríamos com uma sobrecarga do sistema nervoso”, diz a médica Tania Guerreiro, criadora da Oficina da Memória, um espaço sediado no Rio para ativar e estimular funções do cérebro.
É por isso que, do ponto de vista da duração, dois dos três tipos de memórias que temos – a memória de trabalho e a memória de curta duração – culminam no esquecimento, quase instantâneo, em um caso, e após algumas horas, no outro. O terceiro tipo, a memória de longa duração, como o nome já indica, perdura por longos períodos, às vezes uma vida inteira.
Para quem quer entender por que esquecemos e como armazenamos algumas informações selecionadas, saber como funcionam esses três processos distintos é fundamental. Veja abaixo:
Memória do trabalho
A memória de trabalho também costuma ser referida como memória online. Ela dura muito pouco tempo, o necessário para que executemos determinadas funções. É o que nos permite digitar um número de telefone que alguém nos diz ou compreender as frases proferidas por alguém, porque ainda guardamos as palavras anteriores referidas pela pessoa. Depois de uns instantes, essa informação se evapora, sem ter ficado gravada no cérebro.
“Na memória de trabalho, basicamente existe atividade de alguns neurônios enquanto se executam tarefas. Simplesmente mantém um padrão de atividade referente ao estímulo que se acabou de receber. É algo que está próximo da percepção sensorial, mais do que do armazenamento de informações ao longo do tempo”, explica o pesquisador Lucas Alvares.
No livro Questões sobre Memória, o pesquisador Iván Izquierdo, referência no assunto, explica que a memória de trabalho “é evanescente por definição e por natureza”, dependendo de atividade elétrica em neurônios que se ativam no início, no meio e no fim de cada experiência, sem deixar quaisquer traços bioquímicos ou estruturais.
Memória de curta duração
No caso das memórias de curta duração, ocorrem processos bioquímicos que deixam um registro físico – embora não por muito tempo, apenas por algumas horas. Um determinado ponto do cérebro se modifica. “Quando tu recebes a informação de uma memória que está sendo formada, alguns neurônios são ativados, e a conexão entre eles é fortalecida. Depois, se houver estímulo suficiente para ativar algum daqueles neurônios, todos serão ativados, porque estão muito conectados, e teremos a lembrança daquela informação”, explica Alvares.
Se nada acontecer para consolidar essa memória, porém, o registro físico no cérebro vai desaparecer em pouco tempo. A professora Cristiane Furini explica que isso acontece porque não há necessidade de que aquela lembrança seja armazenada. “Algumas coisas são importantes no nosso dia a dia para que as armazenemos por longos períodos, como o nome de um filho. Outras não precisam ser guardadas por tanto tempo. Um exemplo é o que eu almocei três dias atrás. Essa informação era relevante por um período de algumas horas. Um mês depois, não é relevante. Por isso essa memória não vai ser armazenada para durar meses ou anos”.
Memória de longa duração
As memórias de longa duração são memórias de curta duração que receberam tratamento vip: depois de formada a memória de curto prazo, ela é submetida a um outro processo neuroquímico, a inserção de proteínas na conexão entre os neurônios, o que a fortalece. Isso faz a lembrança mantida, pelo menos por algumas semanas, às por décadas.
“O que a maioria dos pesquisadores pensa é que a memória de curta duração é importante para a manutenção da memória enquanto a memória longa está sendo construída. Seria uma reserva de informação para ser utilizada enquanto a outra não está pronta”, afirma Alvares.
Resta entender como nosso cérebro define quais são as memórias que merecerão perdurar, passando por esse processo de consolidação. Na verdade, ele recebe uma série de sinais que vão indicar quais memórias deverão ser “alongadas”. Entre esses sinais estão a atenção despendida, a motivação envolvida e as emoções. Quando um memória está carregada de emoções, por exemplo, hormônios e neurotransmissores indicam que se trata de algo importante, que deve receber tratamento espacial.
O ato de evocar e utilizar com frequência uma recordação também sinaliza que ela deve ser mantida. O pesquisador Lucas Alvares explica que aquelas lembranças de infância que as pessoas conseguem evocar décadas depois envolvem alteração muito profunda no nível neuronal. É difícil perdê-las. É por isso que um idoso com dificuldade de formar memórias no presente continua a falar em detalhes sobre o passado distante.
Como manter a memória afiada
A pessoa esquece onde estacionou o carro, não sabe onde diabos deixou as chaves ou então entra na cozinha e já não lembra o que foi fazer lá. Quando essas situações começam a se repetir, uma das reações típicas é achar que são os primeiros sinais de Alzheimer ou outra demência.
Tania Guerreiro, diretora da Oficina da Memória, afirma que muita gente não procura ajuda por receio de receber um diagnóstico aterrorizante. Mas a realidade costuma ser bem mais prosaica. As falhas na memória são quase sempre resultado de um estilo de vida inadequado e da falta de estímulo do cérebro. Confira o que fazer para manter a memória em dia:
Seja um eterno aprendiz
Tania Guerreiro, da Oficina da Memória, revela que um momento crítico costuma ser a passagem para a aposentadoria. E isso não tem nada a ver com algum declínio cognitivo associado à idade, mas com exigir menos do próprio cérebro: “Tenho observado uma repercussão negativa na memória em pessoas que estavam em atividade, com grandes desafios intelectuais, e suspendem essa demanda intensa. É como se o cérebro se retraísse e as capacidades de memória ficassem meio entorpecidas. A saída é matricular-se em um curso de línguas, fazer uma nova faculdade ou dedicar-se à alguma arte, à gastronomia ou a aprendizados motores, como aulas de dança e tai chi chuan. Viajar é útil, porque envolve a todo momento adaptar-se a experiências novas.
“O que a memória não gosta é de acomodação. Quanto menos é trabalhada, menos eficaz se torna. A pessoa tem de se abrir para a vida e ter a coragem de se envolver com novas aprendizagens. A maior parte das pessoas se acomoda, e é aí que mora o perigo.” Tania Guerreiro, médica da Oficina da Memória.
Combata o estresse
Aqueles esquecimentos do dia a dia – não lembrar onde ficaram as chaves, por exemplo – podem estar relacionados com estresse, um dos grandes vilões da memória. Quem está estressado apresenta maior dificuldade para aprender, memorizar e evocar lembranças. O professor da UFRGS Lucas Alvares cita uma ocasião em que foi assaltado. Na Delegacia de Polícia, ao fazer o boletim de ocorrência, era incapaz de recordar o número da carteira de identidade: “É algo que eu sei, mas como estava nervoso, a informação não vinha, porque o estresse bloqueia o acesso.
Mantenha o foco
Um dos obstáculos para a memorização é o excesso de estímulos simultâneos a que estamos sujeitos. Como aprender e guardar informações, se nossa atenção está dividida entre uma tarefa do trabalho, a TV ligada, o celular e um barulho que vem da rua? É uma tarefa complicada, porque a memória exige tempo e foco, exige uma interação com aquilo que está diante de nós.
A professora Cristiane Furini diz que, se conseguirmos focar nossa atenção na informação que queremos guardar, ela será armazenada com mais facilidade.
Uma estratégia para lidar com uma situação típica, esquecer onde se deixou o carro estacionado do shopping: antes de sair, lançar um olhar para o veículo, de modo a memorizar a visão que se vai ter ao voltar.
Dedique-se à leitura
Ler é um dos melhores exercícios para manter a capacidade de memorização e prevenir problemas de desempenho no futuro. A professora Cristiane Furini explica que a leitura envolve uma série de processos que contribuem para esse resultado. Quando começamos a ler uma palavra, por exemplo, o cérebro faz um rastreio de todas as palavras que começam com as mesmas letras, até achar a correta, o que já é um exercício. Como precisamos de mais de um dia para concluir um livro, toda vez que voltamos a abri-lo ocorre uma evocação do que já foi lido, para que possamos dar sequência a atividade. Além disso, visualizamos o que lemos, o que é um exercício da criatividade e um estímulo à memória.
“A leitura ainda é o melhor exercício para conservar e manter a capacidade de memória. Quando começa a ler uma palavra, o cérebro faz como que um rastreamento de todas as palavras que se iniciam com as mesmas letras, até chegar à palavra certa. Além disso, quem lê está trazendo à tona toda a informação que leu antes. não vai lembrar de todas as palavras, mas tem de contextualizar o que leu até então. Nisso, também está exercitando a memória”, diz Cristiane Furini.