Por que herdamos manias que criticamos em nossos pais
RBS por Larissa Roso
26/03/2019 08:00
Cada indivíduo tem um cérebro parecido com a média do cérebro do pai e da mãe – mas o resultado dessa combinação sempre pode dar algo novo. Foto: Bigstock.
As semelhanças positivas mais evidentes, você as ouvirá à exaustão ao longo dos anos: “Herdou os lindos olhos azuis da mãe”,“Tem o talento para o violão do pai”,“Devora livros como a mãe”, “É bom de bola que nem o pai”. Os defeitos, ou as características capazes de provocar algum riso, também: “É resmungão feito o pai”, “Fica ruborizado facilmente tal qual a mãe”, “Não é capaz de manter o quarto em ordem por um dia sequer – puxou ao mãe”!
Elogios o envaidecem, críticas o irritam, mas a certo ponto da vida você poderá se dar conta de que está terrivelmente parecido com um dos seus pais justamente em um ponto que sempre o incomodou.
É como se o controle tivesse sido arrancado de suas mãos, e você se tornou, veja só, um indivíduo que replica aquilo que mais repreendia: uma mania, um modo de pensamento, uma característica marcante no modo de agir. Sim, isso pode acontecer, mas a boa notícia é que você não sucumbe simplesmente como “vítima” dos desígnios da providência ou de uma praga bem rogada, para ficar em um exemplo mais ordinário – de tanto reclamar de um deles, acabou pegando o mesmo cacoete. Não é (sempre) assim.
A reportagem ouviu dois especialistas de áreas distintas – genética do comportamento e psicanálise – para saber como se processa a criação de hábitos e o quanto os pais podem influenciar no desenvolvimento de nosso comportamento.
Doutor em genética e biologia molecular, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Claiton Bau começa sua explanação apontando o quão complexo é o cérebro humano. Boa parte do genoma (conjunto de genes que o indivíduo tem, herdado metade do pai, metade da mãe) é importante para a constituição desse órgão.
Em um resumo simples, pode-se dizer que, estruturalmente, cada indivíduo tem um cérebro parecido com a média do cérebro do pai e da mãe – mas o resultado dessa combinação sempre pode dar algo novo. A interação de cada um de nós com o mundo onde estamos inseridos é um dos fatores capazes de influenciar, e muito, no desenvolvimento da criança, do adolescente e do adulto.
“Tudo no comportamento é multifatorial, resultado da combinação de milhares de variações genéticas complexas e também com influência do ambiente”, destaca Bau, que cita como exemplo a ocorrência de uma doença bastante comum:
“O diabetes tem influência genética enorme, embora, às vezes, o indivíduo seja o primeiro caso na família e não necessariamente vá transmiti-lo. Os filhos dele vão ser resultado da combinação do genoma dele e do genoma da mãe dos filhos dele, e essa combinação pode trazer algo que o proteja. Por um lado, tem uma influência genética enorme. O mesmo para depressão, ansiedade, esquizofrenia, dependência química: tem uma importância muito grande da genética, é bastante comum a recorrência familiar, com outros parentes afetados, mas é enorme também a influência ambiental. Uma coisa não briga com a outra, elas se complementam”.
Tome-se como exemplo agora o filho de uma mãe superinteligente, que sempre investiu no intelecto, e de um pai que não deu tanta atenção à exploração do quesito cognitivo. O que resulta dessa interação? Alguém com pendor para os estudos e um ótimo desempenho ou, por outro lado, um aluno que passa de ano raspando na média mínima exigida pela escola?
“As duas coisas podem acontecer, é quase imprevisível. Ele pode ter um ambiente que não o estimule muito para o estudo, e ele acabe, por conta própria, tendo esse interesse. Ele também pode ter uma habilidade que, em função do ambiente, não vai ser explorada. Se ele tiver enorme habilidade musical e nunca tiver contato com instrumentos, jamais vai saber que a tem. Da mesma forma, se os indivíduos não tiverem uma escola boa e instigante, a maior probabilidade é de que os talentos se percam. Isso faz uma diferença brutal entre países e instituições”, diz o professor da UFRGS, acrescentando que componentes emocionais, o meio cultural e afinidades afetivas também são fatores relevantes.
“Posso ser narcisista como meu pai e nem perceber”
A ciência se dedica mais ao estudo de doenças do que às sutilezas do comportamento, por razões óbvias. Pode-se afirmar que variações da personalidade também podem ser passadas de pais para filhos nessa mistura de influência genética e ambiental, mas ainda há muito a ser investigado. Ao que tudo indica, mesmo traços tênues são reflexos de variações cognitivas e de personalidade recebidas dos pais. Quanto àquelas características dos genitores que nos perturbam, há uma grande chance de nos afastarmos delas, apesar de ser, segundo Bau, uma “briga difícil”.
“O fato de a gente compreender que há a tendência de funcionar de certa forma não é uma sentença, um destino inexorável”, comenta o docente, lembrando que muitos aspectos negativos da personalidade podem não ser percebidos pelo indivíduo como um problema.
“Um narcisista, que é vaidoso e tem mania de superioridade, acha seu comportamento a coisa mais natural do mundo e espera que as outras pessoas o vejam como superior mesmo. Está bem com ele mesmo, se acha normal, e o problema é para os outros. Posso ser narcisista como meu pai e nem perceber, e está tudo ok assim”.
No caso de uma agressividade ou de uma impulsividade acentuadas, que se sobressaem no pai ou na mãe, você pode recorrer à psicoterapia ou tentar canalizar isso para outro lado, como a prática de um esporte. A depender do caso, há também a alternativa dos medicamentos.
“Ou pode ser que o indivíduo se dedique a uma tarefa intelectual que exija muito esforço e acabe fazendo com que o impulso seja irrelevante, e ele desaparece. Extravasa-se a energia nos estudos em vez de na forma de agressividade. Os níveis de agressividade são muito diferentes entre populações, muitas vezes, em função do nível de educação. A forma de vida que desenvolvemos também pode se tornar um campo infértil para essa característica”, completa Bau.
Repetição justificada
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr., psicanalista, doutor em psicologia social e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), concorda que não estamos diante de uma rua sem saída no que diz respeito a um possível legado indesejado, mas se trata de uma tarefa desafiadora.
“Herdamos comportamentos bons e ruins. Existem algumas heranças que cultivamos e desejamos transmitir, até para as futuras gerações, assim como existem aquelas de que gostaríamos muito de nos desprender. Fazer essa distinção, embora pareça fácil, não é nada fácil. São modelagens de aprendizagem que se repetem há anos. Embora ter consciência, para que possamos reinventar novas formar de lidar com as coisas e com os outros, já seja um passo enorme, não basta ter consciência. Há sempre uma dimensão inconsciente na repetição. Muitas repetições ocorrem porque precisam ser melhor elaboradas”, afirma Norton.
O psicanalista apresenta a situação hipotética de um homem que, quando criança, incomodava-se quando seu pai o repreendia na frente dos amigos, provocando-lhe irritação e choro. Este homem, hoje pai, repete esse mesmo tipo de atitude com seu filho: chama a atenção da criança na frente dos demais, mesmo tendo consciência de que isso não faz bem ao menino.
“É como se fosse algo que se impusesse inconscientemente. Ele só vai se dar conta depois. Por vezes, ele precisa falar disso em análise na tentativa de elaborar melhor essas cenas que, de alguma forma, foram traumáticas e que, se ele não se tratar, vai repeti-las, mesmo tendo consciência. O fato de ter consciência e se irritar já faz parte do processo de tentar fazer outra coisa com isso, mas não dá para ficar focado na irritação, tem que transpor a irritação”, orienta o psicanalista.
O sujeito também pode não se dar conta de estar reproduzindo aquilo que tanto censura em seus pais. Um determinado estado de espírito que provoca uma alteração no tom de voz, por exemplo. “Muitas vezes, aquilo que muito irrita no outro habita um pouco na gente, só que temos dificuldade de reconhecer em nós mesmos”, aponta Norton.
A convivência com os pais é de extrema importância, mas não determinante, complementa o psicanalista. O professor Bau coloca que pesquisas demonstram que o mais importante é o chamado ambiente aleatório, o acaso – ter tido algum problema enquanto ainda estava na barriga da mãe, a convivência com um amigo que levou para determinado caminho, um relacionamento, um acidente, uma morte. Certos professores são fundamentais e determinantes para uma criança ou um jovem, acrescenta Norton: “Nós também somos constituídos por esses outros”.