Apenas 7% das certidões de óbito de pessoas que morreram após lipoaspiração, uma das cirurgias estéticas mais realizadas no Brasil, são preenchidas corretamente. Em 93% delas, há imprecisões ou lacunas que dificultam saber a causa da morte.
Esse cenário apontado em pesquisa de doutorado defendida na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) dificulta a detecção (e a punição) de eventuais erros e a adoção de medidas que poderiam preveni-los.
O estudo traçou o perfil das mortes após lipoaspiração noticiadas pela imprensa brasileira entre janeiro de 1987 e setembro de 2015. Nesse período, o dermatologista Érico Pampado Di Santi, autor da tese, identificou 102 casos.
É o maior número já relatado na literatura médica, mas tem limitação: só uma parcela das mortes chega ao conhecimento da imprensa. Ao buscar as certidões de óbitos desses casos nos cartórios, ele encontrou 86: 98% das vítimas eram mulheres, a maioria jovens. Entre 2016 e 2017, foram noticiadas outras 16 mortes relacionadas à lipoaspiração – não incluídas na tese. Em 2015, foram feitas no Brasil 182.765 cirurgias.
“A morte de pessoas saudáveis em uma cirurgia cosmética e, por definição, eletiva, requer atenção das autoridades em saúde pública”, diz Di Santi, que teve ajuda de um patologista para analisar as certidões de óbito.
Quase metade dessas mortes (44,11%) ocorreu no mesmo dia da cirurgia e dentro de hospitais (54%). A literatura médica aponta que o maior risco de morte está ligado ao volume de gordura aspirado, ao número de regiões tratadas e à agressão ao organismo durante a cirurgia — como perda de sangue maior que um litro.
Não há dados oficiais sobre mortes por lipoaspiração ou por outra cirurgia estética no país. O Ministério da Saúde dispõe do Sistema de Informação sobre Mortalidade, mas esse óbito entra no rol das “causas externas”.
O trabalho inspirou a elaboração de um projeto de lei que pretende tornar obrigatória no país a notificação de mortes ligadas à cirurgia.
“[A tese] foi um trabalho hercúleo e pouco comum. Pode contribuir para deixar as causas de morte mais claras e minimizar o risco nessas cirurgias”, afirma Mauro Enokihara, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica e que fez parte da banca examinadora.
Nas declarações dos médicos que fizeram as cirurgias, muitas mortes são atribuídas a paradas cardiorrespiratórias (modo como todo mundo morre) e à “fatalidade”.
“Fatalidade, nesses casos, significa imperícia, imprudência e negligência e isso é crime previsto em lei. É inadmissível que se dê um atestado de óbito escrito ‘fatalidade'”, diz a patologista Helena Muller, professora-adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.
Entre as causas de morte conhecidas que constam nas certidões de óbito, tromboembolismo pulmonar lidera (17,44%), seguido de perfuração (13,95%) e infecção (9,3%). Quase metade dos óbitos (44%), porém, têm causas indeterminadas.
A médica Rosylane Rocha, do CFM (Conselho Federal de Medicina), afirma que o estudo serve de alerta para os conselhos médicos. “Precisamos entender por que um documento [atestado de óbito] tão importante tem tantas falhas de preenchimento”, diz.
Segundo ela, os médicos dispõem de manual elaborado pelo CFM e Ministério da Saúde que ensina o preenchimento dos atestados e de cursos dados pelos conselhos.
A pesquisa mostra que 12 médicos (13,64% do total) ligados às mortes por lipoaspiração estão envolvidos em mais de um caso –um deles, em cinco. O estudo não revelou o nome dos profissionais e nem as eventuais punições.
Outro fato grave: quase 12% dos médicos que assinaram o atestado de óbito foram responsáveis pelas cirurgias, contrariando norma legal.
“Casos de morte suspeita deveriam ser estudados pelos peritos do Instituto Médico Legal. Exames complementares podem ser a chave para elucidação da causa da morte e isso pode significar prevenção de acidentes cirúrgicos futuros”, diz Di Santi.
Casos
O caso da modelo Pâmela Baris Nascimento, morta em 2012 em São Paulo após lipoaspiração, exemplifica o que isso significa na prática.
O médico que fez cirurgia assinou a declaração de óbito e atribuiu a morte a complicações do pós-operatório. Não foi feito BO ou necropsia.
Dez dias depois da morte, a família suspeitou de erro médico, procurou a polícia e a exumação do corpo confirmou que ela sofrera perfuração do fígado, hemorragia e parada respiratória. Médico, hospital e seguradora de saúde foram condenados a indenizar a família.
Segundo a deputada federal Pollyana Gama (PPS-SP), o projeto que prevê a notificação de mortes por lipo será registrado até o fim do mês na Câmara. Depois, segue para avaliação das comissões.