Mais carinho e menos cobrança: os caminhos e desafios da “nova paternidade”
Flávia Schiochet
11/08/2018 18:00
"Ter filhos é um acontecimento que dá crédito para o teu passado, enche a vida de sentido", poetiza Gerson Guerra, pai de Alice (à direita) e Luiza. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo | Gazeta do Povo
Em 1890, Van Gogh finalizou uma das várias releituras de Jean-François Millet que pintou durante sua estada no Asilo Saint-Rémy, na França. O óleo sobre tela mostra uma cena no campo, em que um bebê dá os primeiros passos com o corpinho sustentado pela mãe. A alguns metros de distância, o pai a aguarda de braços abertos.
“Esse quadro é uma síntese dos papeis: a mãe cuidando e o pai encorajando”, descreve a pediatra Jussara Varassin, integrante da Sociedade Paranaense de Pediatria e com 40 anos de experiência em clínica. Uma cópia de “Primeiros Passos” enfeita a parede de seu consultório há décadas.
Nos últimos 20 anos, a médica tem observado a distância entre o pai e o bebê diminuir, com mais homens assumindo os cuidados dos filhos. “Eles mudam o horário de trabalho para ficar com a criança enquanto a mãe trabalha. Participam da higiene, alimentação, compromissos. É uma mudança social muito proveitosa para a formação das crianças”, explica Jussara. Em outras palavras: não basta ser pai, tem que participar.
O nascimento dessa “nova” paternidade impacta, especialmente, na primeira infância, pois são nos cinco primeiros anos que a maior parte das conexões neurais se formam. “É uma espécie de pavimento para uma adolescência tranquila. Participar dos primeiros anos do seu filho cria vínculos e constitui uma relação de afeto para toda a vida adulta”, exemplifica Marcos Piangers, colunista do Viver Bem sobre paternidade e autor de “Papai é Pop” (Belas-Letras, 2015), livro de crônicas com mais de 100 mil cópias vendidas.
Piangers com as filhas Anita e Aurora. Foto: Marcos Piangers com as filhas Anita e Aurora. Foto: Giselle Sauer/Divulgação.
Piangers é pai de Anita, 14, e Aurora, 7, e um dos apoiadores da campanha “Pai Presente Importa”, do Fundo de População da ONU. No Brasil, mais de 5 milhões de crianças levam apenas o nome da mãe na certidão de nascimento e outras inúmeras configurações familiares não têm convivência familiar. A cruzada da campanha no país é criar um novo estereótipo de pai, que esteja presente em todos os momentos, da gravidez à divisão no trabalho doméstico.
A dificuldade do homem em participar, muitas vezes, é a repetição do comportamento que observaram em sua infância. “Criança aprende pelo exemplo. Antigamente, a referência paterna estava muito mais pautada no papel da lei, da castração, de dizer não. O pai era visto como uma figura mais sisuda, mas hoje isso não cabe mais”, diz Adriana Amaral, psicóloga clínica e colaboradora do Conselho Regional de Psicologia do Paraná.
Quebrar o ciclo
Pai de quatro rapazes, o corretor de imóveis Ricardo Maciel, de 49 anos, viveu a “velha” e a “nova” paternidade. “A diferença na criação do mais velho para o caçula é gritante. Eu cobrava demais, pegava muito no pé. Não era de dialogar tanto. Meus filhos mais velhos levaram até uns cascudos”, diz. O primogênito Thomaz tem 24 anos e o caçula, Eduardo, 12. Completam o time Matheus, 22, e Leonardo, e 19.
Ricardo Maciel com os filhos Leonardo (à direita) e Eduardo. O corretor imobiliário tem quatro filhos e diz ter "aprendido a ser pai" quando o caçula nasceu. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
“Teve a parte ruim do processo, mas aprendizado é assim”, reflete Ricardo, que ficou com a guarda dos dois primeiros filhos quando Thomaz tinha 6 anos. À época trabalhando em outro segmento, seu foco era o trabalho e não a paternidade. Parte da mudança de postura foi com o nascimento de Dudu e com problemas de saúde que passou em 2012, quando repensou sua relação com família, trabalho, casamento e amigos. “Com o Dudu eu aprendi a ser pai. Ele vai olhar para a paternidade como algo que pode ser divertido”, completa. Quando tinha 12 anos, Ricardo perdeu seu pai em um acidente de trânsito. “Ele era caminhoneiro e vivia viajando. Tinha 36 anos. Ele tinha pouco tempo, mas quando tinha, era paizão, acolhedor”, relembra.
Quebrar o ciclo, assim como Ricardo fez com o caçula Dudu, foi algo que Piangers também experimentou. “A cura do abandono do meu pai para mim foi constituir uma família e ser o pai que não tive. Quando abraço minhas filhas é como se eu estivesse abraçando a mim mesmo quando criança”, revela.
Nesse aspecto, Gerson Guerra é, ainda, um ponto fora da curva na amostragem masculina. Com lembranças de um pai afetuoso e companheiro, o engenheiro civil de 64 anos tem duas filhas — Alice, 19, e Luiza, 11 — e se sente privilegiado por ter acompanhado cada etapa da infância. “Quando a Alice nasceu, quis aprender e fazer tudo, sofria por não poder amamentar. Desde trocar fralda, escolher roupa, pentear cabelo, levar na escola, no médico, na aula de violão, na aula de circo, ajudar na lição”, relembra o engenheiro civil que trocou as pranchetas do ofício pelas de artista gráfico e editor.
Gerson Guerra com as filhas Alice e Luiza: encorajar para a independência e acolher é seu objetivo como pai. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Ele incentiva as filhas a sentirem a mesma liberdade que se permitiu ao trocar de área. “Quero que sejam independentes. Se perguntarem minha opinião, jogo os prós e contras. Eu adoro quando elas têm iniciativa. Não sou o pai protetor, sou o pai acolhedor”, define-se. “O pai é essa figura que diz: ‘Seja corajoso, você tem força dentro de si. Venha. Estou esperando’. São valores ligados ao masculino”, explica Jussara.
Caçula de uma família de quatro filhos, Gerson conviveu desde cedo com sobrinhos que tinham poucos anos a menos que ele. Quando a primogênita, Alice, nasceu, ele se arrependeu de não ter tido filhos antes. “É um acontecimento que dá crédito para o teu passado. Ter filhos enche a vida de sentido”, poetiza.
O afeto é revolucionário
Se comparados à quantidade de grupos e mídias com conteúdo voltado à maternidade, ainda são escassos os espaços — físicos e virtuais — em que os homens falem sobre paternidade. Por isso, os amigos de longa data, Marcelo Cafiero e Rodrigo Cornélio lançaram em 2016 o podcast Entre Fraldas. “Abrir-se sobre suas angústias e sentimentos não é fácil para o homem, porque somos educados para sermos fortes e não falarmos”, diz Cafiero, pai da Alice e da Helena, gêmeas de dois anos. Rodrigo é pai da Olívia, 4, e do Gael, 2.
Em novembro de 2017 Cafiero e Cornélio apresentaram o Força de Pai, um evento só para homens em uma cervejaria de Belo Horizonte organizado por Kika Moreira, do podcast Maternitretas, e Sheila Mendonça, do blog Uai Mãe?. “Criticaram: ‘Que novidade, homens no bar’. Mas eram 200 homens dando depoimentos surpreendentes, como a dificuldade de criar uma criança com deficiência; a dor de ser pai de uma criança natimorta e o pouco caso que faziam do sofrimento dele, porque as pessoas não aceitam que homem sofra”, diz Cafiero.
O bloqueio à confidência só reforça o padrão de que os homens devem “dar conta” de serem durões e, em certa medida, ignorantes do dia a dia da família.
“Só mães vão a reunião de pais. Quando há alguma questão com o aluno, a mãe esconde do pai que a criança está com problemas. Quando o pai aparece diz que ‘vai resolver’. Não tem como resolver agora se ele nunca participou”, relata Cafiero, que foi diretor de escola municipal por seis anos e ouviu muitas mães ameaçarem os filhos com a célebre frase “vou contar para o seu pai”.
O papel do pai que provê e castiga parece o suficiente para muitos homens. “O cara acha que só porque trabalha está fazendo tudo o que pode. É preguiça, egoísmo e machismo. Tenho muitos amigos que não sentem vergonha nem remorso de ser assim”, expõe Guerra. Se antes era regra a mãe ser a única responsável por cuidados e brincadeiras por ficar em casa integralmente, nos dias atuais a divisão de tarefas é premente. “Hoje a mulher tem uma atuação social mais forte, há muitos casos de marido desempregado e esposa sustentando a casa”, observa a psicóloga Adriana.
Para Piangers, no entanto, o estereótipo da masculinidade muda quando se constrói e se difunde um novo modelo de “homem de sucesso”, que seria o homem que ganha muito dinheiro e “pega geral”. “Esse estereótipo é uma prisão, porque limita o que nós podemos ser. Podemos mudar esse cenário mostrando homens bem sucedidos que não necessariamente sejam os provedores, mas que sejam felizes perto da família, celebrem a vida perto dos filhos”, incentiva.
A pediatra Jussara Vassarin acredita que a percepção está mudando: “A sociedade tem aceitado que o pai pode ser um bom cuidador”. Para Cafiero, ainda não é o suficiente. “Qualquer coisa que eu faço me chamam de paizão. Isso é ridículo. Quando fui trocar as fraldas das meninas na UTI, todo mundo parou para olhar e me dar parabéns”, critica.
“Culturalmente está mudando, mas ainda é muito pouco. O envolvimento dos homens no pré-nascimento é muito recente. Antes isso era utopia”, observa Adriana.