Comportamento

Vertov, a loja fundada em um antigo apartamento e que redescobre o conceito de livraria

Flávia Schiochet
13/09/2018 17:00
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Sala de histórias em quadrinho, uma das seções da Vertov. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo | Gazeta do Povo

Uma livraria sem vitrine, sem balcão de caixa. Tirando as estantes repletas do teto aos pés, nada mais se parece com a atual ideia que se tem de uma livraria. Até a placa é discreta: dependurada sob a marquise, dá a impressão de que é um pouco maior que uma folha A4. Sem luzes. Subindo os dois lances de escada até o primeiro andar, adentra-se em um corredor com duas portas: uma para o Espaço Cultural Mulher, Trabalho e Memória e a livraria Vertov. Apesar de não estar ao rés do chão, a livraria funciona em horário comercial, de segunda a sexta-feira. É só entrar.
Quem chega lá é porque sabe aonde está indo. A loja fica na altura 835 da Rua Visconde do Rio Branco, a algumas quadras do SESC da Esquina. É um trecho pouco movimentado do centro de Curitiba, em que pouca gente vai subir as escadas para sanar a curiosidade, digamos, na hora do almoço. O espaço em que funciona a livraria desde 2010 era um apartamento. Tem pé direito alto, forro de madeira, assoalho que range. As paredes que separam os cômodos ainda estão lá e uma pia com armário de cozinha permanece. É de onde sai o cafezinho.
Salão principal da Vertov: sem balcão de caixa. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Salão principal da Vertov: sem balcão de caixa. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Toca jazz em um volume que permite distinguir a música ao mesmo tempo que se conversa sem projetar a voz. Sem a trilha sonora, o ambiente fica silencioso como uma biblioteca. Feita sob a medida de um sonho, a Vertov é tocada cotidianamente por dois livreiros. Socorro Araújo, fotógrafa do Estado aposentada, está com 59 anos. Erich Miners, estudante de História, tem 26.
Ambos se conhecem desde que Erich batia na cintura de Socorro — é amigo de infância de um de seus três filhos. “Não sei o que faria sem ele”, elogia Socorro. Depois de um estágio na Biblioteca Estadual, Erich aprendeu na marra a parte administrativa dentro da livraria e livra Socorro das tabelas do Excel. Completam-se desde 2015, quando Erich entrou como sócio na livraria.
Especializada em livros das ciências humanas e artes, a Vertov é um discreto enclave na realidade de megastores, que vendem livros, discos, brinquedos e café. São mais de 9 mil títulos de cerca de 30 editoras, entre cânones da literatura, jovens autores, livros que são base para áreas como Sociologia, Antropologia, História, Filosofia, Geografia, Economia, Comunicação.
A dinâmica da livraria gira em torno do calendário acadêmico, com pico no início dos semestres, em março e agosto. “Eu nunca mais tinha entrado em uma livraria que vivia só de livros. Sem best seller, sem autoajuda. Aqui temos autores que não estão nas megastores”, descreve Erich.
Erich Miners, estudante de História, e Socorro Araújo: sócios e livreiros da Vertov. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Erich Miners, estudante de História, e Socorro Araújo: sócios e livreiros da Vertov. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo

O uso do espaço é voltado para a o encontro de ideias, de pessoas, de distintos grupos. “Queremos retomar o papel das livrarias de criar reuniões literárias, reunir grupos de estudo”, diz Erich.

“Em um momento como este, é importante ter um espaço em que as pessoas desfrutem”, completa Socorro, fazendo alusão ao período pré-eleições, polarizado, e em que muitos dos debates e encontros se dão no mundo on-line. Uma proposta atual para o ambiente de troca e discussão que os cafés em Viena proporcionaram no final do século 19.
Aos 17, o primeiro emprego de Socorro foi em uma livraria em Teresina, no Piauí, como vendedora. A experiência foi o suficiente para ela saber que era isso que gostaria de fazer dia após dia. Mas dois lances de escada acima: “Não tenho vontade de ter uma livraria no chão”.

Representatividade

Um clima de discrição enérgica predomina ali — o posicionamento não é alardeado, mas sua presença é sólida e palpável pelas escolhas de títulos e autores. Para descrever em poucas palavras, a Vertov uma livraria pró-direitos humanos, firme em relação a equidade de tratamento e protagonismo entre homens e mulheres e tem um olhar gentil direcionado às crianças. Resiste como livraria independente para que a pluralidade seja representada. O que paga as contas, além da venda de livros, é a organização de eventos, como foi o lançamento do livro “Como conversar com um fascista” de Marcia Tiburi em 2017 na UFPR.

A curadoria dos livreiros tem um viés, claro. Preza pela escola crítica e representatividade. Socorro estima que 60% dos autores sejam negros americanos e negros africanos, latinos e indígenas. A sessão infantil segue a mesma regra: nas capas ilustradas, vê-se desenho de crianças negras, pardas, famílias refugiadas, histórias indígenas. “O tema étnico-racial é minha especialidade e quis hastear essa bandeira aqui”, revela.

Uma sala grande e quase vazia se esconde atrás da parede da sessão infantil. O espaço é aberto para reuniões de grupos de estudos, exibição de filmes e documentários, discussões acadêmicas e oficinas. A preferência é para iniciativas encabeçadas por mulheres — e são elas as que mais procuram a livraria. “Sinto que elas veem aqui um espaço seguro político, social e biologicamente”, analisa Socorro.

Mulheres primeiro

A experiência de Socorro como fotógrafa do estado do Paraná a fez documentar as terras quilombolas no Paraná entre 1980 e 2000, material que lhe rendeu um mestrado em antropologia da alimentação. De olhar atento e inegavelmente uma esteta, ela sabe de cabeça tantas datas, nomes e trajetória de mulheres importantes na História que fica difícil acompanhar seu ritmo.
O Espaço Cultural Mulher, Trabalho e Memória funciona na porta ao lado da livraria Vertov e é uma mostra permanente de móveis, roupas e objetos que Socorro Araújo coleciona há 30 anos. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
O Espaço Cultural Mulher, Trabalho e Memória funciona na porta ao lado da livraria Vertov e é uma mostra permanente de móveis, roupas e objetos que Socorro Araújo coleciona há 30 anos. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Sua marca registrada é o chapéu coco e a fala doce. Trajando uma saia pied de poule, ela caminha calmamente entre os móveis e vestidos do início do século 20 em exposição permanente no Espaço Cultural Mulher, Trabalho e Memória, a porta vizinha da Livraria Vertov.
As paredes estão forradas de fotografias impressas em sulfite. São retratos de mulheres e documentação fotográfica de mulheres que resistiram, organizaram-se politicamente, lutaram por seus direitos. Estão lá as sufragistas norte-americanas, registros dos primeiros votos femininos em diversos países do mundo e uma imagem das trabalhadoras da fábrica Triangle, em Nova York, prédio que foi incendiado em 1917.
Dentre os objetos colecionados por Socorro, botões de osso, vidro e plástico do início do século 20. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Dentre os objetos colecionados por Socorro, botões de osso, vidro e plástico do início do século 20. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo
Socorro coleciona há 30 anos miudezas como botões de ossos, plástico, vidro e caixinhas de costura de vime, marchetaria ou madre-pérola e também vestimentas e apetrechos dos anos 1920 e 1930. São mais de 80 chapéus e mais de 60 bolsas, acervo que empresta para figurinistas com frequência. Não é fácil enquadrar sua coleção em uma única categoria. História da moda e do trabalho manual, feito ou usado por mulheres, são algumas linhas para defini-la.
“É preciso olhar para a mulher como produtora de cultura e de economia. Sempre nos colocam como cabide da sociedade, como se fôssemos apenas mães”, critica Socorro. Na seleção do que se pode chamar de um museu em processo, há homenagens às mulheres fotógrafas, costureiras, médicas, jornalistas e outras áreas em que as mulheres estiveram presentes ainda no início do século. “Não tenho medo de ter uma posição”.
Serviço
Livraria Vertov. Rua Visconde do Rio Branco, 835, 1.º andar, Centro. Abre de segunda a sexta das 10h às 18h.

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