Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

Paulo José da Costa

Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.

Os mortos e seus livros

Paulo José da Costa
Paulo José da Costa
14/06/2024 14:00
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Livros têm histórias e essas são diretamente ligadas aos seus possuidores. Outro dia, vendemos na livraria um exemplar adquirido em Paris no século XIX, escrito por Bichat – um grande mestre da chamada Igreja da Humanidade – e que, no decorrer de seus 150 anos, foi passando pelas mãos de diversos discípulos, cada um dos quais deixou suas dedicatórias e anotações.
Pertenceu ao grande apóstolo do positivismo Miguel Lemos, que o comprou em Paris em 1880. Em 1938, o filho de Lemos presenteou a obra ao historiador David Carneiro, da Igreja Positivista de Curitiba, que a manteve por 16 anos. Foi, então, repassado para outro irmão na Igreja da Humanidade, Manoel Lourenço Branco, e, por herança, legado à filha dele, Clotilde. Tudo com dedicatórias.
Um livro com essa caminhada não é um qualquer e precisa receber acolhimento na estante bem cuidada de uma pessoa especial, que lhe saiba valorizar, dar carinho, garantir a sobrevivência e agregar-lhe mais história, longe dos quatro grandes flagelos das bibliotecas: a água, o fogo, os insetos e… os herdeiros insensíveis.
Nesses quase 35 anos de livraria, as nossas histórias sobre os livros vêm se acumulando e precisamos começar a contá-las. Afinal, dizem muito sobre o cotidiano e a vida das pessoas, confundindo-se com a crônica da cidade e seus habitantes. O mundo de uma livraria é rico, mas efêmero, elas vêm e desaparecem e os encontros que acontecem entre essas estantes – os risos, as conversas, as trocas de ideias, os filosofares – vão sumindo, levados pelo implacável vento do tempo, junto com as pessoas.
Quando eu e Valéria montamos a Fígaro, em 1990, havia mais de 20 lojas como a nossa em Curitiba e, hoje, dentre todos, somos os sobreviventes. Quantos clientes já partiram para outras esferas? Milhares. Às vezes, sabemos meses depois, quando familiares vêm nos oferecer os livros e discos comprados aqui mesmo nas nossas estantes, e vamos acumulando uma tristeza estranha ao reviver tantos encontros, tantas conversas animadas que tivemos com o falecido.
Cada biblioteca tem a cara de seu dono e, quando sou chamado para uma avaliação de compra ou mesmo uma doação, percorro com o olhar as estantes e já vou moldando a personalidade de quem se foi. Alguns têm livros para ostentação, livros caros, de belas encadernações, às vezes nunca lidos. Outros os colecionam, querem as primeiras edições, dão valor a autógrafos, ao tipo de papel, às gravuras de autor. Há quem persiga uma completa de algum autor ou assunto, uma napoleônica, uma brasiliana, livros da Segunda Guerra Mundial, todas as edições dos poetas de vanguarda, as feitas em casa do Dalton Trevisan, as primeiras de Machado de Assis, e por aí vai… Há bibliotecas pequenas e enormes, aquelas com livros gastos, sujos, invendáveis, as que têm exemplares com mil anotações, folhas dobradas etc.
Na obra de Bichat, a dedicatória para David Carneiro.
Na obra de Bichat, a dedicatória para David Carneiro.
E quando se vão os seus atuais possuidores, há que se dar destino aos volumes. Há bibliotecas que estão à espera de um novo dono há décadas, encarceradas, à mercê dos insetos e da umidade. Outras, há alguns dias ou semanas. Nestas últimas, costumo até fazer uma oração, pedir licença. Bobagem? Pode ser, mas quem sente as energias sou eu e posso lhes garantir que existem, principalmente quando o defunto partiu recentemente e era muito apegado aos livros ou alguma coleção específica.
Mas acho que tenho tido sucesso nessas minhas trocas de experiências e sensações com os antigos donos, afinal vou limpar, cuidar e passar para outras mãos, quiçá de um jovem estudante ávido de conhecimento. Uma livraria alfarrabista é um lugar mágico de passagem de livros de uma geração para outra. Tenho certeza que, se estiverem observando, estarão contentes com o novo ciclo que seus volumes iniciam.
O problema maior não é com os mortos, às vezes pode ser com os vivos. Quando adquirimos, eu e Valéria, a biblioteca do escritor Valêncio Xavier, um articulista escreveu em jornal paulista que “a biblioteca de Valêncio Xavier está sendo vendida em um sebo”, sugerindo que ela deveria ter sido doada a uma entidade e lançando uma impressão negativa sobre as livrarias de usados.
Ora, Valencio comprava seus livros em sebos, sua obra é toda eivada desse mundo particular que ele gostava de frequentar, cansamos de vê-lo no garimpo das pepitas que iriam compor os seus escritos. Natural que voltem para sua origem. Muitas de suas obras são repletas de anotações e recortes – quem leu “O mez da gripe” sabe bem como funcionava o seu processo de criação. E em cima dos livros adquiridos pela Fígaro foram escritas teses universitárias. Quer algo melhor?
Além disso, pelo que soubemos, a família havia procurado diversos órgãos, que não demonstraram interesse na compra, queriam a doação. Ora, livros são bens como quadros de pintores ou selos de uma coleção, porque não transformar em dinheiro? Livros e outros bens culturais são, às vezes, a poupança de uma vida. Nada mais justo que sejam vendidos. Se a família quiser doar, que assim seja, mas ninguém é obrigado a fazer isso, essas entidades, se sérias, deveriam ter verbas para aquisições.
Uma pena que herdeiros nem sempre tenham sensibilidade para perceber que há um mundo agregado aos livros que deveria ser também cuidado e mantido. Uma dedicatória está perenemente ligada ao exemplar, porque escrita em uma página – apesar de, às vezes, pessoas ignorantes arrancarem as folhas de rosto com assinaturas, mutilando a obra para sempre –, mas existem também as cartas.
Há muitos anos, ao fechar negócio com herdeiros do filólogo e linguista Jesus Bello Galvão, que mantinha, há décadas, correspondência com autores do nível de um Carlos Drummond de Andrade, me entristeci ao descobrir que o destino dos papéis foi o pior possível. Hoje, ao primeiro contato com a família, me apresso em dizer para não jogarem nada fora. Tenho salvado fotografias, diários, cartas, toda uma memorabília ligada ao antigo dono da biblioteca. São centenas de dossiês e pastas em minha casa, um mundo que tenho explorado para escrever estas crônicas e abastecer meu blog e minhas comunidades no Facebook.
Na próxima, conto sobre as bibliotecas de David Carneiro e Temístocles Linhares. Até lá!

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