José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

Vestidas de noiva

José Carlos Fernandes
13/04/2024 16:11
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“Você é aquele que tem uma tia desaparecida na Venezuela, não é?”, pergunta, sempre que me vê, uma imigrante venezuelana, vendedora aqui perto de casa. Digo sim e a conversa engata. Não é diferente quando encontro outros oriundos da terra do Nicolás Maduro. Não resisto: basta ouvir o sotaque cheio de “erres” para desatar a dizer que cheguei a ter sete tios e tias portugueses vivendo no país vizinho. “Numa dessas, somos parentes”, brinco.
A primeira reação dos venezuelanos é de espanto. Não demora, a prosa ganha sabor de folhetim. Gosto de lhes contar que, faz tempo, em parceria com meus primos Ermelinda e João (em memória), procuro o paradeiro de nossa tia Ângela Gomes Henriques. Nutro o desejo secreto de localizá-la rica e saudável na badalada Isla Margarita. Mas não conseguimos achar seu rastro nem com os préstimos do Family Search. “No estaría muerta?”, dizem. Não quero acreditar. E se me dão corda, entrego a eles um enredo de Gloria Perez.
Capítulo 1: em 1955, Ângela migrou da Ilha da Madeira, em Portugal, para o Brasil. Dois anos depois, quando tinha míseros 15 anos, foi dada em casamento a um português que vivia em Caracas, Manoel Gonçalves. De passagem por Curitiba, decidiu voltar para a Venezuela com aliança no dedo. Os motivos da fissura do portuga são uma deliciosa especulação.
Capítulo 2: Ângela tinha uma sobrinha, Judite, também adolescente e vinda da Madeira havia pouco. Eram melhores amigas. Andavam de mãos dadas pela Vila Cubas e pela Vila Leão, no Novo Mundo, onde viviam, fingindo que falavam inglês. Riam juntas. São doces as lembranças dessas refugiadas do salazarismo. Mas quis o destino, esse desocupado, que outro forasteiro português, José, se aproximasse da menina Judite. Botou-lhe aliança de noivado e prometeu casa própria.
Enquanto Deus dormia, a papelada dos dois casamentos sem juízo correu sobre trilhos, exceto por um detalhe: só havia um vestido de noiva – o que Manuel comprou para Ângela, uma imitação modesta do traje usado pela atriz Grace Kelly para se unir com o príncipe Rainier, em 1956. Já Judite foi informada pelos pais, sem anestesia, que teria de subir ao altar com sua roupinha de ir à missa. Desatou a chorar de forma tão sentida que sua tristeza saiu da Vila Leão e chegou à Vila Cubas, direto nos ouvidos de Ângela, a quem coube os deveres do amor.
Capítulo 3: em 5 de outubro de 1957, Ângela e Manuel se casaram na Catedral, pela manhã. À tarde, Judite se casou com José, na Igreja do Bom Jesus do Portão. As noivas usaram o mesmo vestido. Na casa de minha mãe, os únicos registros das cerimônias, feitas no Foto Brasil da XV, foram colocados num quadro só. Há um ne se quais na imagem das meninas em trajes idênticos, no mesmo dia, acolitadas pelos desconhecidos de bigodes com os quais se uni- ram em Matrimônio.
Capítulo 4: em seguida às bodas, Ângela se mudou para a Venezuela. Teve filhos. Descasou. Sentiu a fúria do exílio moral. As cartas para o Brasil foram rareando – e lá se vão cinco décadas de silêncio. Volta e meia, minha mãe, Judite, 82 anos, diz que a maior alegria de seus dias seria rever a melhor amiga. Pega-se imaginando se estaria ainda bonita – e se pergunta por que nunca mais mandou notícias.
A trama que envolve as duas imigrantes adolescentes lembra o fabuloso livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, adaptado para o cinema por Karim Aïnouz. Recomendo. E enquanto ela não encontra um “epílogo”, mantenho o relato nas minhas redes. Vai que um internauta faz a mensagem chegar à Ângela que sumiu do mapa, deixando um vestido parecido ao da princesa de Mônaco e um mar de saudades na alma de Judite, ainda uma menina à espera do final feliz.