A rotina de visitar o médico todos os anos e passar por uma bateria de exames com o objetivo de rastrear toda e qualquer doença está em extinção. A nova revolução da medicina será uma maior tolerância às incertezas e às probabilidades – e isso não é algo negativo. Como os médicos têm percebido que nem todo mundo precisa fazer os check up’s e nem todas as doenças precisam de uma intervenção imediata, os rastreios e tratamentos serão guiados, cada vez mais, pelo histórico familiar e genético do paciente.
A mudança na mentalidade e na prática médica está sendo discutida pela iniciativa do Choosing Wisely, que chegou ao Brasil no fim de 2016 e busca, junto às sociedades médicas, repensar o “overtreatment” ou a sobreutilização de exames e medicamentos que podem causar mais danos que benefícios à saúde da população.
No final de junho, o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRMPR) deu espaço a médicos com essa nova ideologia discutirem com os pares e o Viver Bem conversou com o co-coordenador nacional da iniciativa no Brasil, Paulo Fabrício Nogueira Paim, que também é presidente da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar, sobre o fim dos exames frequentes e até prejudiciais.
O avanço nas tecnologias também trouxe uma evolução dos exames médicos. É incomum sairmos de uma consulta médica sem a indicação de exames. Como o movimento Choosing Wisely vê a prescrição de exames?
Quando o médico se une com o paciente e a família existe certa euforia, ansiedade e expectativa na relação, que gera uma pressão para que o médico faça algo, encontre coisas, trate e resolva. Mas já existem artigos científicos que citam a nova revolução da medicina como sendo uma maior tolerância às incertezas. Temos debatido muito sobre isso, de como é importante observarmos mais os sinais clínicos. A clínica é uma linguagem soberana, que está acima dos exames, acima de questões que são matemáticas. O Choosing Wisely Brasil tem esse papel de auxiliar em uma mudança cognitiva, comportamental dos médicos para um novo momento. Para termos um comportamento mais reflexivo, mais cadenciado na nossa pesquisa e na nossa forma de descobrir e tratar. Hoje a nossa tendência é ter um raciocínio binário: ou faço ou não faço. Não é assim. Existe a possibilidade de não fazer agora, ou fazer em uma semana, um mês. Não é deixar de fazer, mas de tratar no tempo adequado.
Os check ups podem ser vistos como desnecessários?
Vamos evoluir nesse sentido e os check ups passarão a ser cada vez mais direcionados a um perfil genético, um perfil de possibilidades e probabilidades daquele paciente. Acho que esse é o grande segredo. Irmos para um momento que o médico analise o paciente de forma individualizada. A medida que você vê uma pesquisa com amostras que são, muitas vezes, heterogêneas, na hora de você aplicar esse trabalho científico, não deve fazer como se fosse uma receita de bolo. Você mensura com base na experiência, na faixa etária, na genética, se a família teve determinadas doenças. Vivemos agora um momento de revisar a nossa relação com as evidências científicas. Passamos muito tempo aplicando as evidências de forma sistemática e achando que esse era o raciocínio cartesiano e exato: “eu sou um bom médico e aplico evidências científicas em meus pacientes”. Mas vamos estudar as evidências, nos aprofundarmos nelas e ver em que grupos esses trabalhos foram feitos. Eram com a mesma faixa etária que o paciente? Eram da mesma raça? Eram daquele perfil genético do paciente? Existem muitas variáveis e, a medida que temos esse comportamento mais reflexivo, damos um passo atrás.
O medo de um processo jurídico pode afastar o médico desse tipo de abordagem mais reflexiva?
Existe realmente esse raciocínio da judicialização da medicina. É um fator que impacta no inconsciente do médico e age como um fantasma sobre o médico, que faz ele tomar decisões precipitadas em muitas vezes. Mas existe um antídoto para isso que é a relação médico-paciente. Quando você empodera o paciente com dados, com evidências, e quando a família está junto, vocês consensualmente tomam a melhor decisão. Aí a judicialização cai por terra. O papel do médico é ser esse consultor, provocar reflexões no paciente e na família e ponderar a decisão para acharem o melhor caminho. Eu vejo que estamos em um momento de sair dessa judicialização, porque estamos entrando na era de qualidade da segurança assistencial. E isso se atinge com um maior tempo de consulta, ao lado do paciente, debatendo, conversando. Por isso temos que reunir conselhos, entidades médicas e da sociedade civil para blindarmos essa relação médico/paciente que é muito importante. Precisamos melhorar essa relação e não digo na questão de remuneração, mas de tempo. Tempo para conversar e se conhecer. Como vou tratar alguém que eu não conheço?
Buscar médicos mais generalistas, como médico de família e clínicos gerais, pode ajudar nessa relação?
Os médicos generalistas são importantes filtros, porque eles têm maior tolerância às incertezas. O generalista observa enquanto os especialistas dizem: “eu vou descobrir o que você tem” e ele usa todo o arsenal que tiver, que muitas vezes é um arsenal mais invasivo, e acaba fazendo uma intervenção porque eles têm uma menor tolerância. Não significa diminuir a importância dos especialistas, mas devemos, dentro dessa relação entre entidades médicas e sociedade, fortalecer e empoderar o médico generalista.
Há alguma especialidade médica que esteja mais avançada nessa mentalidade do que outras?
Há uma morosidade, porque as especialidades devem perceber as mudanças de forma natural. Nada deve ser imposto. A urologia, por exemplo, sofre muita pressão dessa necessidade de se fazer rastreio. Foi-se gerando certo desenho de colocar essa pressão em cima do urologista e hoje é comum que a população peça pelo PSA, pelo toque retal. Agora esses médicos passam por um momento reflexivo, que tem avançado naturalmente. E deve avançar assim porque mexemos com coisas que estavam sendo feitas da mesma forma por décadas.
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