Por semanas, não importava o dia ou quão atarefada estivesse, a londrinense Havilá Porto tirava uma hora por dia para dar o play em três músicas da obra “O Messias”. A imersão tinha um objetivo: familiarizar-se tanto com a melodia e com as letras até praticamente decorar cada nota. “Eu precisava ouvir pelo menos três músicas do coro por dia para ficar tranquila”, relembrou ao telefone, com a voz reticente de adolescentes envergonhados.

Cantando desde os três anos, a soprano, hoje com 20, preparava-se para participar pela segunda vez do Canto em Trancoso, uma semana de estudos em música erudita na Bahia, em julho. Realizado pela quarta vez no Brasil, o evento gratifica os jovens destaques com cursos na Europa. Havilá cursa Direito, mas seu desejo é se dedicar ao canto lírico. Ela se debruçou sobre a peça do compositor alemão Georg Friedrich Händel assim que a Mozarteum Brasileiro, organização responsável pelo evento, divulgou qual seria o tema do programa.

Ao final dos sete dias, coro e orquestra apresentaram O Messias e a dedicação de Havilá foi recompensada: em julho parte para Smolenice, na Eslováquia. Junto de outros três brasileiros com idade média de 20 anos, ela participa de um curso de verão da academia alemã Chorakademie Lübeck no Castelo de Smolenice. Serão três semanas com mais 36 jovens de 15 países. “Ano passado eu não tinha experiência e também tinha um inglês básico, muito ruim. Percebi o quanto eu precisava melhorar para este ano, principalmente o inglês para poder me comunicar melhor”, disse.

Sua primeira viagem para fora do Paraná foi para a Bahia. “Foi a primeira vez que viajei de avião também e fui sozinha. Fiquei muito perdida e nervosa”, contou em meio a uma risadinha nervosa. Para a seleção do Canto em Trancoso, Havilá gravou em vídeo um solo de “An Chloe”, canção de Mozart. Foi uma das 40 pessoas escolhidas dentre 166 que se inscreveram. A programação de aulas e ensaios tomava todo o dia em Trancoso: os estudantes passavam das 9h às 18h no teatro, ora nos ensaios de coro, ora trabalhando em seu repertório com professores escolhidos pela Mozarteum.

Escrita em 1742 por Händel para um concerto de Páscoa, O Messias é dividido em três partes, com 51 movimentos. As músicas do coro somam mais de 30. Executada integralmente, a obra dura pouco mais de duas horas. À Havilá, coube o recitativo “He was cut off out of the land of living” e a ária “But thou didst not leave His soul in hell”, da segunda parte. Cantar em outro idioma nunca foi um problema. “Quando eu era mais nova, por mais que eu traduzisse a peça, eu ia pela sonoridade”, revela. “Agora estudo porque tenho mais contato com outras línguas. Primeiro fazemos a leitura da peça, do vocabulário, porque há muitas em italiano, alemão, francês. Depois vamos para a melodia”, explica. “Aí colocamos a letra na melodia e só então vem o acompanhamento”.

Natural de Londrina, Havilá estuda no Conservatório Musical Carlos Gomes desde os oito anos de idade. Foi bolsista da instituição e conquistou solos desde cedo — no Youtube é possível vê-la cantando com diferentes idades. Com aproximadamente cinco anos, sua voz se destacava no coro infantil da igreja. “Consideravam minha voz mais madura que das outras crianças e me pediam para fazer mais solos”, recorda. Foi quando seus pais notaram que era hora de procurar uma educação musical formal. A descoberta do canto lírico foi cedo. “Quando ouvia música clássica eu me sentia mais… eu sentia que aquilo era para mim”, descreveu. “Eu me identifico. Sempre gostei da carga dramática”.

Fez aula de piano e de violino, mas decidiu ficar apenas com o canto. “Mas tem que ter noção, principalmente de piano. Eu não progredi nas aulas de instrumento, mas é importante saber principalmente por causa da partitura. E agora estou há dois anos estudando teoria musical”, comenta.

No Natal de 2017, cantou junto da Orquestra Sinfônica de Londrina. Nos registros em vídeo, a menina de 1,56m está de vestido longo vermelho escuro e cabelos ondulados soltos, que lhe batem na cintura. Quando canta, arqueia levemente as sobrancelhas, numa expressão que parece assombro. Gesticula pouco e calmamente. Movimenta os braços lentamente em frente ao tronco e faz as notas ressoarem pelo auditório enquanto mantém as mãos relaxadas, os dedos se tocando e os cotovelos levemente dobrados para fora. Ao final, a performance foi resumida por uma das senhoras presentes com uma frase curta e eloquente: “Você é um monstro!”