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Agência RBS

Saiba mais sobre a “enigmática” endometriose

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15/06/2015 11:53
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Entre o desejo de ser mãe e o momento em que pegou a filha nos braços, passaram-se 11 anos. A professora Gislaine Furtado da Cruz, 38 anos, enxerga na recém-nascida Sophie a sua vitória contra a endometriose – uma doença que acomete 6 milhões de brasileiras, causa infertilidade em 80% delas e age quase em silêncio, dificultando o diagnóstico.
Uma vez por mês, os hormônios do ciclo menstrual fazem com que a camada interna do útero, o endométrio, aumente de tamanho para esperar uma possível gravidez. Se isso não ocorre, o endométrio descama e é eliminado em forma de menstruação. Só que, em alguns casos, suas células pegam o caminho errado e se alojam na cavidade abdominal, grudando-se, por exemplo, no intestino, nos ovários, nas trompas e na bexiga – o que provoca um processo inflamatório que caracteriza a enfermidade.
Algumas mulheres passam anos sem saber que têm endometriose. São, em média, sete anos e cinco médicos diferentes antes do diagnóstico, conforme o ginecologista Mauricio Abrão, especialista na doença. “É uma janela longa de sofrimento permeada pelo desconhecimento”, resume o médico responsável pelo setor de endometriose da Clínica Ginecológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
De fato, 53% das mulheres brasileiras nunca ouviram falar na enfermidade, ou seja, desconhecem que exista uma doença desse tipo, conforme uma pesquisa feita em 2013 pela Sociedade Brasileira de Endometriose.
Doença camaleônica
O sintoma mais comum é a cólica forte e prolongada, muitas vezes tida como um sinal normal da menstruação. Por isso, pouca gente decide investigá-la. Abrão estima que entre 40% e 50% das adolescentes com cólicas fortes, “aquelas que têm de ser buscadas na escola porque não aguentam a dor”, sofrem de endometriose.
Mas a intensidade da dor pélvica, explica o especialista em reprodução humana Nilo Frantz, depende de onde estão localizados os focos de endométrio dentro do abdômen: se estiverem perto de áreas muito enervadas, como os ligamentos do útero, o desconforto pode ser muito sério, até incapacitante. “Em situações mais severas, a mulher pode sentir, também, dor durante o sexo e desconforto intestinal. Mas a endometriose é um camaleão: pode se apresentar de várias formas ou até mesmo não ter sintomas”, compara o médico que, semana passada, organizou um simpósio em Porto Alegre para discutir a enfermidade e a sua relação com a infertilidade.
Foi o que aconteceu com Gislaine. A professora não tinha cólicas fortes nem sentia qualquer diferença em seu corpo durante a menstruação. Mas passou quatro anos tentando engravidar, sem sucesso, até um médico desconfiar de endometriose e solicitar a videolaparoscopia. A cirurgia constatou que suas trompas estavam grudadas por trás do útero, devido a concentrações massivas de endométrio.
De acordo com Frantz, a doença, além de alterar o sistema imunológico, interfere na anatomia das trompas, estruturas responsáveis por transportar o óvulo até o útero, dificultando a gravidez. Apesar de ser uma condição benigna, a endometriose, se não for tratada, pode comprometer os órgãos abdominais a ponto de a mulher perdê-los.
Desafio
A endometriose tem um apelido entre a comunidade médica: a doença da mulher moderna. Isso porque uma de suas principais causas é o fato de que, hoje, as mulheres preferem engravidar mais tarde e optam por ter menos filhos. Menstruam mais, portanto: cerca de 400 vezes durante toda a vida reprodutiva. No início do século 20, esse número era 10 vezes menor.
O estresse também é um fator que colabora para o desenvolvimento da doença, pois provoca picos de adrenalina, uma substância associada à liberação de estrógeno – o hormônio feminino que alimenta as células do endométrio, aumentando sua velocidade de crescimento. Não por acaso, os médicos observam mais casos de endometriose nas grandes cidades.
O desafio atual para os pesquisadores em endometriose e infertilidade é encontrar uma forma de diagnóstico que não seja a laparoscopia, procedimento considerado invasivo. A prática para ressecar os focos “fujões” de endométrio permite o acesso ao interior da pelve por meio de uma microcâmera, de bisturis pequenos e uma cânula de sucção, inseridos por pequenos “furinhos” no abdômen. “É algo bem agressivo, tive de ficar uma semana internada só para descobrir o que eu tinha”, relembra Gislaine.
Segundo o médico Mauricio Abrão, que também é coordenador dos cursos de pós-graduação em Ginecologia Minimamente Invasiva e Reprodução Humana do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, o Brasil está no topo das pesquisas que buscam o diagnóstico da endometriose por meio da boa e velha ultrassonografia, em uma técnica desenvolvida por ele e pelo grupo de endometriose do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Para aplicar a técnica, é preciso treinar os radiologistas e solicitar à paciente um preparo intestinal simples. Apenas isso”, afirma Abrão, que considera a novidade uma “revolução” por diminuir o número de cirurgias.
Cura na menopausa
A cura da endometriose, segundo o ginecologista gaúcho Nilo Frantz, ocorre com a menopausa. “Mas não faz sentido esperar mais de 30 anos em sofrimento, sob pena de diminuir muito a qualidade de vida da mulher. É inaceitável que ela se acostume com a dor”, afirma.
Além das injeções de hormônio e da cirurgia para retirar os focos de endométrio dos órgãos pélvicos, anti-inflamatórios e analgésicos também podem ser administrados como tratamento, mas com cuidado: eles aliviam os sintomas, mas não tratam a doença em si. A pílula anticoncepcional de uso contínuo, por inibir a menstruação, é outra forma de tentar anular os sintomas da endometriose. No entanto, sob uma perspectiva cultural, essa alternativa não parece ter uma aceitação boa no Brasil, de acordo com as observações do ginecologista francês Charles Chapron, chefe do departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Universitário Cochin, de Paris: “A maioria das mulheres brasileiras associa a menstruação ao feminino. Quando elas não menstruam, há uma sensação de perda de feminilidade”.
Conforme Frantz, a estratégia de tratamento é traçada com base no que a mulher deseja para o seu futuro: ter (mais) filhos ou não. A cirurgia, por exemplo, pode comprometer a reserva ovariana e piorar o estado reprodutivo da paciente. A fertilização in vitro surge como uma possibilidade de reprimir a endometriose: “A gravidez é um dos melhores tratamentos, pois confere um estado hormonal em que a endometriose ‘hiberna’, já que não há menstruação”.
Depois de dar à luz Sophie, que tem um mês de vida, Gislaine espera que a endometriose não reincida. Mas por motivos de saúde, apenas. Aos 38 anos, não pretende engravidar de novo e abandonou o sonho de ter dois filhos: “Comecei a procurar explicações para minha infertilidade quando eu tinha 27 anos. Se eu tivesse sido diagnosticada precocemente, àquela época, daria tempo de ter mais um. Mas depois de tudo o que passei, peregrinando de médico em médico e me frustrando cada vez que o teste de gravidez dava negativo, desisti da ideia”.