Comportamento

New York Times, por Paula Span

“Eu cochilei no meio da operação”: um alerta mostra que cirurgiões precisam saber quando parar

New York Times, por Paula Span
17/02/2019 12:00
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A força de trabalho médica, como o resto da população, ficou consideravelmente mais velha nos últimos anos. Foto: Bigstock

No fim de 2015, o dr. Herbert Dardik, chefe de cirurgia vascular do Hospital e Centro Médico Englewood, em Nova Jersey, cochilou na sala de operação.
Mas Dardik, na época com 80 anos, não estava realizando a operação. Como ele havia passado por um pequeno procedimento médico alguns dias antes, disse à sua paciente que outro cirurgião faria sua endarterectomia carotídea, em que uma placa é removida da artéria carótida para melhorar o fluxo sanguíneo. Mas quando ela implorou que Dardik pelo menos estivesse presente durante a operação, ele concordou. “Eu estava apenas assessorando”, lembrou-se ele. “Foi tão chato, que eu meio que cochilei” – e então um enfermeiro anestesista alarmado relatou o incidente aos administradores. Em poucos dias, o chefe de anestesiologia e o diretor médico do hospital estavam no escritório de Dardik, elogiando sua habilidade cirúrgica, ao mesmo tempo em que o incentivavam a reduzir sua carga de trabalho.
“Fiquei tão irritado que me levantei, abri a porta e disse: ‘Saiam'”, disse Dardik. “Quem sabe melhor o que posso fazer a não ser eu mesmo?” Ele também resistiu à sugestão de que se submetesse a exames no Hospital Sinai, em Baltimore, que tinha estabelecido um programa de dois dias para avaliar se os cirurgiões idosos poderiam continuar praticando com segurança.
Pouco tempo depois, Dardik estava em um avião quando o comandante, de aparência idosa, subiu a bordo. (Regulamentos federais exigem a aposentadoria aos 65 anos para pilotos comerciais.) “Espero que esse cara ainda esteja bem”, Dardik se lembra de ter pensado. Nesse instante, “a ficha caiu – é isso que as outras pessoas pensam quando olham para mim”. Algumas semanas depois, ele se tornou o primeiro médico avaliado pelo programa de cirurgiões idosos do Hospital Sinai.

A força de trabalho médica, como o resto da população, ficou consideravelmente mais velha nos últimos anos. Quase um quarto dos médicos tinham 65 anos ou mais em 2015, de acordo com a Associação Médica Americana. Em 2017, mais de 122 mil nessa faixa etária ainda prestavam atendimento a pacientes.

Pesquisadores e analistas de cuidados de saúde estão discutindo o que fazer em relação a isso. “Sabemos que as faculdades humanas diminuem com a idade”, disse o dr. Mark Katlic, cirurgião torácico que fundou o programa do Hospital Sinai.
Cirurgião Herbert Dardik. Foto: New York Times
Cirurgião Herbert Dardik. Foto: New York Times
O declínio da visão, da audição e da cognição pode afetar qualquer profissional de saúde (ou qualquer ser humano). Mas Katlic expressou particular preocupação com os cirurgiões, que precisam ter visão excepcional, destreza manual, velocidade de reação e resistência. Depois dos 70 anos, “você consegue pinçar um pequeno vaso sanguíneo sem pegar outra coisa?”, perguntou ele. “Ou usar instrumentos muito pequenos para suturas?” Ainda segundo ele, algumas operações duram seis ou sete horas, ou mais.
Estudos não oferecem respostas claras para tais perguntas. A cognição e outras habilidades diminuem com a idade, mas a variação entre os indivíduos aumenta.
Aos 75 anos, “há médicos atentos, maravilhosos, e há aqueles que precisam parar”, disse o dr. E. Patchen Dellinger, principal autor de uma revisão sobre médicos idosos publicada na revista “JAMA Surgery”.

Experientes X novatos

Ainda é discutível se os cirurgiões mais velhos têm resultados piores que os mais jovens, porque décadas de experiência e julgamento podem compensar um modesto declínio físico ou cognitivo. Um grande estudo com pacientes do Medicare descobriu que cirurgiões com mais de 60 anos tiveram taxas de mortalidade mais elevadas em diversos tipos de operações, incluindo pontes de safena, mas não em outros procedimentos. E as diferenças foram pequenas, ocorrendo principalmente entre os médicos que realizaram poucas operações.

No ano passado, os pesquisadores que revisavam registros de quase 900 mil pacientes do Medicare relataram que as operações feitas por cirurgiões idosos tiveram uma taxa mais baixa de mortalidade que as realizadas por médicos mais novos.

“É provavelmente uma pequena porcentagem de cirurgiões em seus 70 anos que tem problemas, talvez cinco ou dez por cento. Mas são eles que queremos identificar”, disse Katlic.
Isso provou ser assustador. “O público acredita que nos policiamos profissionalmente. Mas não, pelo menos não muito bem.” Uma declaração de 2016 do Colégio Americano de Cirurgiões, por exemplo, recomendou testes físicos, visuais e neurocognitivos para cirurgiões idosos, mas em uma base totalmente voluntária, sem necessidade de divulgação de resultados.

Maratona

Tornar-se cirurgião é difícil, uma maratona cansativa. Mas não há muitas exigências para continuar sendo um, dizem os especialistas. A recertificação regular do hospital tende a ser superficial. Os colegas frequentemente falham ao relatar o comportamento preocupante, especialmente porque os médicos mais velhos podem ser figuras poderosas, respeitadas.
Reações como alergias estão entre as mais comuns. Crédito: Bigstock
Reações como alergias estão entre as mais comuns. Crédito: Bigstock
A pesquisa também indica que os cirurgiões idosos não julgam muito bem sua própria competência. “Somos uma espécie de fraternidade de profissionais altamente conceituados. E nos temos em grande consideração”, disse Dellinger. Os médicos resistem às sugestões de que diminuam a quantidade de trabalho ou se afastem, acrescentou o dr. Glen Gabbard, psiquiatra na Faculdade de Medicina Baylor, que se especializou em avaliações psicológicas de seus pares.

“Ser médico é o cerne de sua identidade. Torna-se algo que eles não conseguem abandonar. Não pensam em se aposentar – ‘quem vai cuidar dos meus pacientes?’.” Uma idade de aposentadoria obrigatória poderia resolver esses problemas. Mas também poderia violar as leis de discriminação, botando para escanteio médicos perfeitamente competentes e deixando as comunidades rurais ainda mais subatendidas.

Os defensores argumentam que a triagem obrigatória em idades mais avançadas seria a melhor abordagem, uma maneira de distinguir profissionais capazes daqueles que devem se aposentar, reduzir suas responsabilidades ou passar para o ensino ou outras atividades. Alguns hospitais já adotaram essa tática, incluindo a Universidade do Sistema de Saúde da Virginia, o Hospital da Universidade Temple e a UPMC em Pittsburgh.
As políticas para praticantes idosos, como são frequentemente chamadas, começam aos 70 anos e cobrem não apenas médicos, mas enfermeiros, assistentes e outros profissionais. A Sociedade de Cadeiras Cirúrgicas, que representa líderes em centros médicos acadêmicos, pode incentivar essa medida nos próximos meses, com a publicação de “Transitioning the Senior Surgeon” (Transição do Cirurgião Sênior). O dr. Todd Rosengart, presidente da sociedade, espera que o relatório estimule discussões mais amplas.
Mas, por enquanto, o número de instituições que tomam uma atitude formal relacionada à idade continua a ser minúsculo. Em seu quinto ano, o programa de avaliação do Hospital Sinai examinou um total de oito cirurgiões, com idades entre 55 e 81. Por ser o primeiro, Dardik achou os testes árduos, mas se saiu bem. O relatório do programa indicou que ele poderia continuar operando.
Quando a equipe de avaliação discutiu seu desempenho, “a maioria das pessoas disse: ‘Se eu precisasse de uma cirurgia vascular simples, como uma endarterectomia carotídea, queria que ele a fizesse'”, lembrou Katlic, embora, para operações demoradas, possam optar por alguém mais jovem. Porém, de volta a Englewood, Dardik começou a ter uma intensa dor nas costas. Preocupado com as distrações no centro cirúrgico, ele voluntariamente parou de operar em 2016.
Agora, aos 83 anos, ele ainda vem ao hospital todos os dias, mas se dedica à pesquisa e ao ensino.

“Você se acha invencível, mas o tempo passa e eu me tornei um defensor da avaliação”, refletiu. No entanto, ele não conseguiu convencer seus colegas a adotar um programa de fim de carreira. “Estávamos estudando a possibilidade. Achei que estávamos chegando lá, mas, então, tudo foi por água abaixo.”

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