Comportamento

Carolina Kirchner Furquim, especial para a Gazeta do Povo

Saiba porque é importante se preparar para a morte

Carolina Kirchner Furquim, especial para a Gazeta do Povo
24/01/2019 17:00
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Na USP, pesquisadora estuda e descobre que falar sobre a morte faz viver melhor. Foto: Bigstock.

Se preparar para a morte é viver uma vida mais digna. Essa é a conclusão de um estudo conduzido pela psicóloga Gabriela Machado Giberti, do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP), com idosos de mais 80 anos. A pesquisa, intitulada “A única certeza da morte é a vida: investigação fenomenológica sobre idosos que se preparam para a morte”, foi elaborada para o título de mestre em ciências da psicóloga, também especialista em gerontologia pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, e revela que ignorar a morte ou tratá-la como tabu traz sofrimento durante o processo de envelhecimento.
“É importante que se naturalize a ideia de se preparar para a morte, o que faz com que as pessoas vivam sua existência da melhor forma possível. A morte convoca para o tempo do viver”, diz Gabriela. O Viver Bem conversou com a psicóloga sobre diferentes questões relacionadas à finitude da vida e à naturalização da ideia do preparo para a morte.
Qual foi sua motivação para o desenvolvimento da pesquisa?
A corrente de pensamento base da pesquisa é a fenomenologia-existencial que compreende a experiência humana como singular. Por isso, não busca a generalização das informações apreendidas no estudo. Foram entrevistados três idosos longevos, ou seja, com mais de 80 anos, que consideram estarem preparados para a morte. A motivação para desenvolver o estudo foi dar luz à vivência de idosos que entraram em contato com a questão da própria finitude e cuidaram dela de alguma forma. As diversas iniciativas consideradas pelos participantes como “preparação para a morte” merecem destaque, pois rompem com a tradição cultural que considera a morte como um tabu, ou seja, um tema proibido e que deve ser evitado.
O que você observou do comportamento das pessoas que estão preparadas para morrer?
A pesquisa não objetivou ressaltar quem está “mais” ou “menos” preparado para a morte. Isso porque a concepção sobre o que é “estar preparado para a morte” é algo extremamente individual. Por exemplo, uma idosa pode considerar que se preparou para a finitude ao entregar um anel de família para uma neta, enquanto outro idoso considera que sua preparação ocorreu ao fazer o testamento. Apesar de não haver uma regra única sobre o tema, nota-se que, para elegerem o que é importante no final de sua existência, os idosos tendem a refletir sobre o que foi importante ao longo de suas vidas. Para ilustrar, uma idosa sempre se preocupou em ter organização financeira. Ao ponderar sobre sua finitude, poderá ver sentido em se preparar financeiramente para as despesas decorrentes do seu falecimento. De um modo geral, a consideração sobre qual vida é digna de ser vivida é expandida ao abarcar o questionamento também sobre qual morte é digna.
(Foto: Bigstock)
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Falar sobre a finitude da vida, especialmente nessa faixa etária, é importante? Os idosos sentem essa necessidade?
É importante em qualquer idade, pois trata-se de um processo inegável da existência humana. Acontece que, na velhice, assim como em pacientes com diagnósticos ameaçadores de sua vida, há um anúncio da proximidade da morte. Especialmente com os idosos longevos, a perspectiva de futuro é encurtada em virtude da projeção da expectativa de vida. Fato esse que, muitas vezes, convoca os idosos a entrarem em contato com a questão da morte como uma possibilidade real e próxima.

“Há idosos que não querem pensar na morte e isso deve ser respeitado. Contudo, torna-se um problema quando a parcela dessa população que deseja refletir sobre a finitude não acha espaços de acolhimento e interlocução. Por ser uma cultura que evita falar de morte, é comum os idosos encontrarem dificuldade e resistência quando tentam conversar sobre esse assunto, seja com familiares, amigos ou profissionais da saúde.”

Quais as maiores dores emocionais do grupo pesquisado? O que parece incomodar mais nesse processo?
As angústias relacionadas ao processo de envelhecimento e morte são particulares. No grupo dos entrevistados nenhum participante demonstrou sofrimento relacionado ao fato de a morte estar próxima. Pelo contrário, em um contexto de vida sofrida, a morte mostrou-se como alívio e possibilidade de descanso. Foram identificadas inseguranças dos idosos relacionadas à incerteza quanto ao respeito às diretrizes desejadas. Por exemplo, o medo de que o patrimônio não seja transmitido da forma idealizada, ou de que intervenções médicas indesejadas sejam feitas em caso de perda de consciência. Situações em que o idoso perde controle sobre as decisões e terceiros se responsabilizam pelos encaminhamentos da vida do idoso se mostraram potencialmente angustiantes.
Sobre os meios de prolongamento da vida x qualidade da existência, houve algum apontamento em especial? Como você enxerga essa relação?
Os avanços da tecnologia médica influenciaram enormemente a longevidade humana. A medicina possui recursos para manter as pessoas vivas por muito tempo. Ao mesmo tempo, surgiu uma discussão bioética importante referente a qual vida está sendo preservada. Todos os entrevistados apresentaram aspectos que fomentam a reflexão de que quantidade de vida não é sinônimo de qualidade e eu concordo com essa percepção. Eles indicaram que a vida pode perder sentido se não houver existência sadia. Vale esclarecer que a concepção sobre o que torna a vida com qualidade é extremamente singular. Contudo, notou-se que os idosos cuja funcionalidade do corpo encontra-se deteriorada a ponto de impedi-los de exercerem atividades que sempre fizeram, localizaram que a vida digna de ser vivida encontrava-se no passado, ou seja, demonstraram um esvaziamento no sentido da vida do presente. Nesse cenário, torna-se essencial a disseminação do conhecimento sobre o Testamento Vital. Trata-se de um documento que dispõe acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que cada pessoa deseja ser submetida, ou não, quando estiver com uma doença ameaçadora da vida fora de possibilidades terapêuticas e, principalmente, impossibilitada de manifestar livremente sua vontade. Dois dos entrevistados na pesquisa alinharam essas diretrizes com seus médicos, na tentativa de viver uma vida e uma morte de acordo com seus valores.

“Na cultura ocidental a morte é um tabu, motivo de medo, vergonha e considerada um fracasso. Não somos educados para lidar com ela, mas, sim, para fugir. Assim, quando a morte se impõe, somos surpreendidos, ficamos assustados e sem saber o que fazer.”

Por que a morte é um tema ainda bastante evitado entre as famílias?
A morte é um assunto evitado não só entre as famílias, mas na sociedade brasileira como um todo. Na cultura ocidental a morte é um tabu, motivo de medo, vergonha e considerada um fracasso. Não somos educados para lidar com ela, mas, sim, para fugir. Assim, quando a morte se impõe, somos surpreendidos, ficamos assustados e sem saber o que fazer. Importante esclarecer que defender a possibilidade de a morte ser debatida com naturalidade não significa romantizar que ela não trará dor e tristeza perante a perda de um ente querido. A morte representa um tema que pode, sim, trazer sofrimento, por isso costuma ser tabu, mas trata-se de um tema inerente à existência humana e, inevitavelmente, atravessará a vida das pessoas.
Pensar sobre o fim é ter controle sobre a própria vida?
O fato de que a existência tem um fim viabiliza a reflexão sobre qual vida é digna de ser vivida. Nesse sentido, pensar sobre a finitude possibilita a apropriação da vida, bem como a diversificação dos significados da morte, os quais não precisam necessariamente ter conotações negativas. O desenvolvimento de recursos de enfrentamento, quando a morte se faz presente, ajuda no acolhimento e assistência a favor de quem deseja elaborar essa questão existencial.

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