Saúde e Bem-Estar

Carlos Coelho

Omeprazol no balaio da farmácia? Anvisa estuda facilitar a compra de remédio

Carlos Coelho
22/02/2019 17:15
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A Proteste, Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, dá algumas orientações para os pacientes conseguirem medicamentos mais baratos ou de graça. (Foto: Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo / arquivo) | GAZETA

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estuda liberar o omeprazol, entre outras 28 substâncias, para a venda sem a necessidade de contato com o farmacêutico. Embora já seja possível comprar o medicamento de controle do ácido estomacal sem apresentar uma receita médica, a nova proposta facilitaria ainda mais a aquisição, visto que o medicamento seria disposto do lado de cá do balcão, próximo aos analgésicos, antieméticos e antiácidos em geral.
O omeprazol é o representante mais conhecido da classe de medicamentos dos inibidores da bomba de prótons, e age através do bloqueio das glândulas produtoras do ácido estomacal. Quem faz uso do omeprazol sente o alívio imediato na azia, refluxo e queimação, mas recorrer a ele de forma corriqueira é arriscado.
O uso a longo prazo (de seis meses a um ano) deste medicamento aumenta o risco de um efeito rebote: quando a pessoa, então, decide parar de tomá-lo, as glândulas hipertrofiadas produzem uma hipersecreção do ácido. Além dos sintomas mais intensos, o paciente corre o risco de desenvolver pequenos pólipos no estômago. Diante da dor, é comum que a pessoa retome a medicação sem orientação médica e sem tratar o problema desencadeado.
A facilitação na compra do omeprazol, portanto, é controversa. Os pedidos de liberação foram feitos pelos laboratórios farmacêuticos e estão nas gavetas da Anvisa, que também não estipulou um prazo de quando irá avaliar a questão. Se optar pela liberação, o omeprazol será considerado um Medicamento Isento de Prescrição (MIP). Estão também na lista o diclofenaco de potássio, usado no tratamento de alergias; o penciclovir, voltado ao controle dos sintomas da herpes; e o dicloridrato de levocetirizina, indicado contra alergias, entre outras.

Por que liberar?

De acordo com a Associação Brasileira da Indústria dos Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip), porém, o pedido das farmacêuticas é procedente e mostra avanço na regulamentação brasileira para o segmento.
“Até 2016 nós não tínhamos uma legislação clara para isso [para a isenção de prescrição de determinada substância]. [O laboratório] não tinha critérios para mostrar para a Anvisa que seu medicamento tinha essa condição. Naquele ano veio uma legislação moderna, construída com base nas melhores práticas globais, trazendo sete critérios. A metade deles diz respeito à segurança, que é o pilar do medicamento isento”, defende Marli Sileci, vice-presidente executiva da entidade.
A nova resolução a que a dirigente se refere (Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 98/2016) foi construída pela Anvisa com o apoio da própria Abimip e pede para que as farmacêuticas submetam à análise de isenção apenas substâncias que cumpram requisitos como baixo potencial de danos à saúde, uso indicado a doenças não consideradas graves, baixo risco de intoxicação em caso de abuso e que não causem dependência química.
“Nós temos substâncias que há 10, 15 anos já são livres em outros países. Eles tiveram a vigilância apurada e nenhum dano para o consumidor. Dessa lista, o esomeprazol, alguns anti-inflamatórios já estão livres lá fora e não trouxeram danos ao consumidor. Por que aqui nós não podemos?”, aponta a executiva da Abimip.
A associação não pede diretamente a isenção dos medicamentos, mas a vice-presidente se mostra confiante sobre as substâncias com análise na mesa da Anvisa. “Acredito que os laboratórios submeteram à avaliação somente medicamentos que cumprem todos os requisitos”, destaca.
Especialistas se dividem entre pontos positivos e negativos na facilitação do acesso ao omeprazol nas farmácias (Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado)
Especialistas se dividem entre pontos positivos e negativos na facilitação do acesso ao omeprazol nas farmácias (Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado)

Maior consumo

Para uma corrente de profissionais da saúde, a facilidade na aquisição do omeprazol levaria a uma escalada no consumo. Embora a indústria bata na tecla de que as campanhas de conscientização podem controlar a automedicação, os números apontam que o consumo desenfreado de medicamentos tem, na verdade, aumentado.

Levantamento do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) mostra que, em 2018, 79% dos brasileiros com mais de 16 anos dizem tomar remédios sem prescrição médica. Em 2014, eram 72%. A pesquisa mais recente foi feita em setembro com 2.126 pessoas a partir dos 16 anos, em 129 municípios das cinco regiões do Brasil.

Entre as razões para o aumento na automedicação, a urgência em resolver o sintoma (levando-se em consideração o tempo de espera para uma consulta) e o acesso fácil às informações pela internet foram as mais recorrentes, conforme destaca Ismael Rosa, farmacêutico clínico e coordenador da pesquisa, em seu relatório de análise.
Embora a maior parte do consumo sem orientação não seja de medicamentos com alto risco, mas sim de analgésicos simples, especialistas apontam que o hábito pode mascarar doenças mais graves escondidas em dores de cabeça ou de estômago aparentemente simples.

“Quando se tira a obrigatoriedade da prescrição médica, a tendência é que a automedicação aumente. Nós já vemos que nos dias de hoje as pessoas tomam omeprazol e derivados sem precisar. Se tiver uma avaliação médica criteriosa, percebe-se que não há a necessidade de uso. Tem pessoas que usam porque exageram ao comer ou exageraram no consumo de bebida alcoólica. Ele não é pra isso. A isenção de prescrição parece arriscada por aumentar o consumo não atrelado à necessidade”, opina Gustavo Justo Schulz, médico cirurgião especializado em aparelho digestivo que atua no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC/UFPR) e no hospital VITA, em Curitiba.

Além disso, o uso continuado dessa medicação, que acontece quando as pessoas se acostumam a se sentir bem com ela, pode trazer uma série de efeitos colaterais, como a redução da absorção de cálcio e de vitamina D. “Isso aumenta a incidência de osteoporose. [O exagero] pode estar associado à inflamação do rim, alteração da flora intestinal com possibilidade de inflamação, entre outros casos”, diz Schulz.
“Acho que a isenção de prescrição deste medicamento não é uma boa. Ela [a liberação] deve ser feita para algumas medicações, como analgésicos, antitérmicos, antigases. Esses são remédios que não têm grandes efeitos colaterais. São bem conhecidos pela indústria farmacêutica”, destaca o cirurgião do aparelho digestivo.
Se usado sem orientação ou controle médico, o omeprazol pode mascarar sintomas de doenças importantes, como úlceras (Foto: VisualHunt)
Se usado sem orientação ou controle médico, o omeprazol pode mascarar sintomas de doenças importantes, como úlceras (Foto: VisualHunt)

Omeprazol livre nos EUA

Mesmo fora do Brasil, o descontrole no uso de omeprazol, especificamente, preocupa. Nos Estados Unidos, onde já é livre de prescrição, a substância e suas variáveis são consumidas por mais de 15 milhões de pessoas, de acordo com reportagem do The New York Times, publicada em 2017. Na publicação, Jonathan Aviv, otorrinolaringologista afiliado à Faculdade de Medicina Mount Sinai Icahn, em Nova York, disse que “80% dos norte-americanos podem estar tomando esse medicamento de forma errada”, segundo estudos a que teve acesso.
Da mesma forma, o movimento de médicos que visa discutir os exageros em tratamentos, conhecido por Choosing Wisely, colocou a substância em uma lista negra, no ano passado, de medicamentos que devem ser evitados.
Não é para tanto, ameniza Abílio Sanchez, médico gastroenterologista e professor paulista. “O omeprazol é um medicamento fantástico. Assim como, sem dúvida, são os outros na lista. O ponto-chave é: não se pode pilotar uma Ferrari sem saber como dirigir”, aponta. E, para ele, o brasileiro mostra que vem reprovando ano após ano neste exame de direção.
Caso sejam alçados ao posto de MIPs [medicamentos isentos de prescrição], os remédios ganham uma suavizada em sua abordagem. De automedicação – ou autoprescrição [termo que a indústria e alguns países preferem usar] – passam a ser considerados itens de autocuidado, que é quando o paciente assume uma atitude para melhorar sua saúde, a exemplo de praticar exercício físico. Um título útil, já que o autocuidado é um direito defendido pela Organização Mundial da Saúde.

Negócios à parte

A Abimip e as farmacêuticas baseiam seu apoio à isenção de um montante maior de medicamentos também a partir de uma análise econômica. De acordo com a associação, facilitar o acesso a esses remédios significaria desafogar o sistema de saúde e evitar perda de dias de trabalho.
A entidade se apoia em um estudo publicado no Jornal Brasileiro de Economia e Saúde, em 2017, que leva em conta custos dos MIPs e das consultas no SUS, e aponta que a cada R$ 1 gasto com esses medicamentos, há uma economia de R$ 7 no Brasil.
O montante salvo ao fim de um ano, segundo a análise, é de mais de R$ 300 milhões — R$ 369 milhões economizando em dias de perda de trabalho e R$ 56 milhões em consultas médicas; o custo dos MIPs somaria R$ 61 milhões. “Isso demonstra o benefício social do medicamento se as pessoas forem orientadas para o uso responsável”, diz Marli.
Para a indústria farmacêutica é um número bastante vantajoso, já que isso representaria uma cifra maior de ganho em medicamentos. Atualmente, ao menos na teoria, existe a barreira do médico prescrever ou não.
O negócio dos MIPs está em crescimento no país. Dados da Associação Brasileira das Redes de Farmácia (Abrafarma) apontam que as vendas de medicamentos isentos de prescrição totalizaram R$ 7,5 bilhões em 2018, um crescimento de 15% em relação a 2017. O aumento foi maior do que qualquer outro segmento de produtos vendidos em farmácias. Segundo estes dados, os MIPs representam 16% de tudo que é vendido nesses estabelecimentos.
A Anvisa ainda não estipulou prazo para a definição sobre isenção ou não das substâncias. A indústria, porém, acredita em uma resposta nos próximos meses.

Uma questão de resolução

De acordo com as regras da Anvisa, um medicamento pode ser isento de prescrição médica se preencher os seguintes requisitos:

1) Ter um tempo mínimo de comercialização do princípio ativo ou da associação de princípios ativos;

2)Representar segurança: baixo potencial de danos à saúde, intoxicação e interação medicamentosa ou alimentar; reações adversas com causalidades conhecidas e reversíveis após suspensão;

3)Ser indicado no tratamento, prevenção ou alívio de sinais e sintomas de doenças não graves;

4)Ser indicado para uso por curto período de tempo ou por tempo previsto em bula, exceto para uso preventivo, fitoterápicos e indicados para doenças de baixa gravidade;

5)Ser manejável (poder ser aplicado) pelo paciente ou o cuidador;

6)Ter baixo potencial de risco ao paciente em consequência de mau uso ou abuso e intoxicação;

7)Não causar dependência.

*As regras são definidas pela Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 98/2016.
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