Saúde e Bem-Estar

Amanda Milléo

Sem medo do bisturi

Amanda Milléo
19/06/2014 03:18
As doenças congênitas cardíacas são a segunda maior causa de mortalidade neonatal no Brasil e exigem, na sua maioria, tratamento cirúrgico. Ao lado delas, as hérnias inguinal e umbilical, fimose, problemas nos testículos e freio de língua são as cirurgias mais comuns em crianças. Apesar de exigirem um procedimento invasivo para a correção, muitas são resolvidas em um dia e novas técnicas e materiais específicos para as crianças permitem uma recuperação mais rápida e com resultados melhores para o restante da vida.
Em apenas uma cirurgia, as crianças diagnosticadas com a cardiopatia transposição das grandes artérias têm a malformação corrigida e podem continuar suas vidas sem se preocuparem com novos procedimentos. Há alguns anos, a taxa de mortalidade da mesma doença chegava a 100%, especialmente pelo diagnóstico tardio. “Eu vivi a época em que não existia o ecocardiograma e a gente imaginava o que a criança tinha. Hoje, o aparelho consegue precisar qual defeito, o exato local e o diagnóstico é feito intrautero”, explica o cardiologista pediátrico do Hospital Cardiológico Costantini, Nelson Miyague. Quando a doença não é captada pelo ecofetal, o teste do coraçãozinho – obrigatório por lei estadual em todas as maternidades e feito até 24 horas após o nascimento – serve como complemento ao diagnóstico, confirmando ou apontando outras cardiopatias.
Na mesa cirúrgica, o avanço se deve principalmente aos novos equipamentos, específicos para a condição dos pequenos, que têm permitido maior controle durante operações de alta complexidade. A máquina extracorpórea, segundo Miyague, foi o principal deles, pois permitiu que o sangue recebesse oxigênio fora do corpo e fosse devolvido, mantendo os demais órgãos estáveis. “A idade para operar a criança foi reduzindo cada vez mais e melhorando os resultados. Daqui para frente, veremos os resultados das primeiras cirurgias feitas há 25, 30 anos”, complementa o cardiologista.
Da cabeça aos pés
Tão complexas quanto as cirurgias do coração, as pediátricas – que se referem ao espaço entre o pescoço e o trato urinário da criança – também foram beneficiadas nos últimos 50 anos com novas técnicas e materiais adaptados. Atualmente, a internação, procedimento e recuperação de hérnias, fimose e outros procedimentos comuns não passam de um dia no hospital, segundo o cirurgião pediátrico do Hospital Pequeno Príncipe, César Sabbaga. “Chego a fazer de cinco a seis cirurgias de hérnia inguinal por dia. Apesar de existir no adulto também, é um procedimento completamente diferente nas crianças. O tamanho, a técnica, o modo de corrigir no adulto é outro, tem o uso de uma tela e uma fraqueza na parede que não ocorre na criança”, explica Sabbaga.
Medo de muitos pais, a anestesia foi aprimorada, contribuindo com as melhorias nos resultados cirúrgicos da pediatria. Não se espera mais que a criança tenha desconforto, enjoo, vômito e dor de cabeça no pós-operatório, tornando mais rápida a recuperação. De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, regional do Paraná, Marco Aurélio Lopes Gamborgi, especialista em fissuras lábio-palatinas, o modo de aplicação, via endovenosa, facilita e promove uma segurança maior durante a operação.
Cirurgias intrauterinas
Questionada pelos especialistas, a cirurgia intrauterina exige um cuidado redobrado do cirurgião e serve apenas para casos específicos, que não podem esperar o nascimento. Por colocar a mãe e a criança em risco, mesmo em casos de malformações neurológicas, com a exposição da medula em alguns casos, essa cirurgia exige uma avaliação criteriosa. “Fora do Brasil é mais comum, mas é preciso ter esse cuidado redobrado, porque o risco é da mãe e do filho”, diz o neurocirurgião pediátrico do Hospital Pequeno Príncipe, Adriano Maeda.
Malformações sem causa
São nove meses na expectativa e, a cada semana, uma mudança diferente. Primeiro formam-se o tubo neural, coração, aparelho digestivo, braços e pernas. Em seguida, o corpo passa a tomar forma, com o coração batendo e olhos, orelha, fossas nasais e a boca sendo delineados. Apesar de ter apenas três centímetros, o feto passou por muitas transformações e, neste caminho, erros de percurso podem ocorrer.
O avanço nos tratamentos das doenças congênitas não foi acompanhado pela descoberta das causas das malformações. Alguns fatores são conhecidos, como álcool e drogas, mas em muitos casos, não há justificativas para o erro no desenvolvimento da criança. “Nós temos uma lista extensa de fatores, tanto ambientais quanto genéticos, que podem estar associados. Mas, se esses fatores respondem por todos os casos ou os específicos, não dá para determinar. Sabemos, no entanto, que a ausência de ácido fólico em períodos pré-concepcionais ou no primeiro trimestre da gravidez aumenta o risco de desenvolvimento da fissura”, explica o especialista em fissuras lábio palatinas e professor associado ao Departamento de Diagnóstico Oral, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Universidade Estadual de Campinas, Ricardo Coletta. A mesma vitamina do complexo B influencia o fechamento do tubo neural logo após a concepção, evitando problemas neurológicos graves como a meningocele ou mielomeningocele, com a exposição da medula, vulnerável a infecções.
Sem tolerância
“Não há dose mínima de álcool que possa ser ingerida sem prejuízos na gravidez, podendo causar retardamento mental”, ressalta o diretor do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (Eclam), Eduardo Castilla. Cigarro e outras drogas estão associados à prematuridade, enquanto a obesidade e diabete podem causar lábio leporino e espinha bífida, e desenvolver diabete congênita no recém-nascido. “O nosso desconhecimento sobre o tema ainda é muito grande. A gastroesquise, uma das malformações do trato digestivo, que a criança nasce com o intestino para fora do organismo, é uma malformação cuja frequência tem aumentado nos últimos três anos em todo o mundo, inclusive no Brasil, e não temos a menor ideia do motivo”, diz Castilla.
Hérnia inguinal
A hérnia inguinal é tratada de forma diferente nas crianças. Durante o desenvolvimento no útero, o canal que liga o abdome à bolsa escrotal orienta a descida dos testículos nos meninos e, caso não se feche após a descida, forma um espaço perigoso. A hérnia é a passagem de vísceras do abdome, em geral o intestino, por esse canal.
Olhos vermelhos
Tire uma foto da criança recém-nascida, mostrando os olhos. O reflexo vermelho da pupila indica que a luz está passando de forma adequada pelo cristalino, até a retina. Outra sugestão é tampar um dos olhos da criança pequena e perceber como ela reage. Se em algum dos olhos ela se apresentar mais apreensiva ou ansiosa, pode ser um indício de dificuldade visual.
Correção programada
A melhoria dos equipamentos de imagem para o diagnóstico das malformações fez com que fosse possível “casar” a correção da doença com o nascimento da criança. Um paciente com hidrocefalia (acúmulo de fluido na cavidade craniana), muitas vezes recebe o diagnóstico durante a ecografia e, logo após nascer, é levado ao centro cirúrgico. Para confirmar, o médico pode solicitar uma ressonância magnética, que permite visualizar a doença com mais detalhes.
Correção sem bisturi
A espinha bífida oculta, pseudoestrabismo, comunicação intraventricular no coração, refluxo gastroesofágico e displasia do desenvolvimento do quadril são malformações que não precisam das mãos de cirurgiões. O desenvolvimento das crianças ou, em alguns casos, medicamentos orais colaboram com a correção espontânea da doença.
• 12 horas é o tempo que pode chegar uma cirurgia pediátrica, dependendo da complexidade, como a cirurgia da cloaca, malformação do aparelho digestivo que une em um orifício a vagina, reto e uretra.